
Se a Encarnação significa uma “descida” de Deus, o Cristo equivale também a toda a Criação, ele de certa forma a contém: ele é uma segunda criação que purifica e “redime” a primeira. Ele assume, com a cruz, o mal da Existência; para poder assumir esse mal, era necessário que Deus se tornasse a Existência. A cruz está em toda parte porque a criação é necessariamente separada de Deus; a Existência se afirma e se dilata pelo gozo, mas este torna-se pecado na medida em que Deus não é seu objeto, ainda que todo gozo contenha uma desculpa metafísica pelo fato de que ele visa a Deus por sua própria natureza existencial; todo pecado se quebra ao pé da cruz. Mas o homem não é feito unicamente de desejo cego; ele recebeu a inteligência a fim de conhecer Deus; ele deve ter consciência do fim divino de todas as coisas, e ao mesmo tempo ele deve “tomar sua cruz” e “oferecer a face esquerda”, ou seja, ir além da lógica interna da sua prisão existencial; sua lógica, que é “loucura” aos olhos do mundo, deve ir além do plano dessa prisão, ela deve ser “vertical” ou celeste, e não “horizontal” ou terrestre.
A Existência ou a “manifestação” tem dois aspectos: a árvore e a cruz; a árvore alegre que suporta a serpente e a cruz dolorosa que suporta o Verbo feito carne. Para os ímpios, a Existência é um mundo de paixão que o homem sanciona pela filosofia “segundo a carne”; para os eleitos, ela é um mundo de provação trespassado pela graça, a fé, a gnose.
Jesus é, não somente o novo Adão, mas também a nova criação. A antiga é totalidade e circunferência, a nova, unicidade e centro.
*
Nós não podemos escapar à cruz, não mais do que podemos escapar à Existência. No fundo de tudo o que existe, está a cruz. O ego é uma encosta que afasta de Deus; a cruz é o término dessa encosta. Se a Existência é “algo de Deus”, ela também é algo “que não é Deus”; é isto que o ego encarna. E a cruz traz isto de volta àquilo, e permite vencer ao mesmo tempo a Existência.
O que torna o problema da Existência tão complexo é que Deus transparece por toda parte, pois nada poderia existir fora d’Ele; o que mais importa é não separar-se nunca dessa percepção longínqua do Divino. E é por isso que um gozo à sombra da cruz é concebível e mesmo inevitável; existir é gozar, ainda que seja ao pé da cruz. É aí que o homem deve se manter, pois tal é a natureza profunda das coisas; o homem não pode violá-la senão em aparência. O sofrimento e a morte não são senão a cruz que reaparece na carne cósmica; a Existência é uma rosa marcada com uma cruz.
*
As morais sociais distinguem entre o direito legítimo de um homem e a injustiça cometida por outro contra ele; mas a moral mística do Cristo, a rigor, não dá razão a ninguém, ou antes, ela se situa em um plano onde ninguém está totalmente certo, pois todo homem é pecador e “só Deus é bom” [1]. A Lei mosaica faz lapidar aquele que lesou a sociedade, como a adúltera, mas, para o Cristo, não há ninguém além de Deus que possa ser lesado, o que exclui toda forma de vingança; todo homem é culpado diante do Eterno. Todo pecado é o de Adão e Eva, e todo ser humano é Adão ou Eva [2]; o primeiro ato de justiça será portanto perdoar ao nosso próximo. A falta de “outrem” está no fundo da nossa; ela não é senão uma manifestação da falta latente que constitui nossa substância comum.
Nota [1] – “Pois, ainda que eu não me sinta culpado de nada, nem por isso estou desculpado; meu juiz é o Senhor” (I Cor. IV, 4).
Nota [2] – São Gregório o Grande diz em uma carta — citada pelo Venerável Beda em sua História da Igreja e do povo inglês — que “todo pecado procede de três causas, a saber, a sugestão, o prazer e o consentimento. A sugestão vem do diabo, o prazer do corpo e o consentimento da vontade. A serpente sugeriu o primeiro pecado, e Eva, enquanto carne, nele encontrou prazer carnal, ao passo que Adão, enquanto espírito, a ele consentiu; mas só a mais sutil inteligência consegue discernir entre a sugestão e o prazer, e entre o prazer e o consentimento…”
Mas o Cristo, cujo reino “não é deste mundo”, deixa uma porta aberta para a justiça humana no que ela tem de inevitável: “Dai a César o que é de César.” Negar essa justiça em todos os planos seria o mesmo que instaurar a injustiça; contudo, é necessário vencer o ódio trazendo o mal de volta à sua raiz total, a esse “escândalo” que não pode não vir, mas antes de tudo descobrindo-o na nossa própria natureza, que é aquela de todos os egos; o ego é uma ilusão de ótica que faz aparecer uma palha como uma trave, e inversamente, dependendo de se se trata de “nós mesmos” ou de “outrem”. É necessário encontrar, pela Verdade, essa serenidade que compreende tudo, “perdoa tudo”, e reduz tudo ao equilíbrio; é necessário vencer o mal com a paz, que está além do mal e que não é portanto seu contrário; a verdadeira paz não tem contrário.
“Aquele dentre vós que é sem pecado, que atire a primeira pedra”: nós somos todos de uma mesma substância pecadora, de uma mesma matéria suscetível desse abcesso que é o mal, e, por conseguinte, nós somos todos interligados no mal, de uma maneira indireta sem dúvida, mas não obstante real; é como se cada um levasse em si uma parcela da responsabilidade de todo pecado. O pecado aparece então com um acidente cósmico, exatamente como o ego o é em uma escala mais vasta; a rigor, é sem pecado aquele que é sem ego e que, destarte, é como o vento do qual “não se sabe de onde ele vem nem para onde vai”. Se só Deus tem o direito de punir, é porque ele está além do ego; o ódio é arrogar-se o lugar de Deus, é esquecer a solidariedade humana em uma miséria comum, é atribuir ao próprio “eu” uma sorte de absolutez, destacando-o dessa substância da qual os indivíduos não são senão contrações ou nós. É verdade que Deus delega por vezes seu direito de punir ao homem enquanto este está acima do “eu” ou enquanto ele deve e pode estar; mas ser o instrumento de Deus é ser sem ódio contra o homem. No ódio, o homem esquece o “pecado original” e assume por isso mesmo, de uma certa maneira, o pecado de outrem; é porque odiando nós nos fazemos Deus, que devemos amar nossos inimigos. Odiar a outrem é esquecer que só Deus é perfeito, e que só Deus é Juiz. Em boa lógica não se pode odiar senão “em Deus” e “por Deus”; é necessário odiar nosso ego, não a “alma imortal”, e odiar aquele que odeia a Deus enquanto ele odeia a Deus e não de outra forma [3], o que equivale a dizer que odiamos seu ódio de Deus e não sua alma.
Nota [3] – Da mesma forma, quando o Cristo diz que é preciso “odiar pai e mãe”, isso significa que é preciso rejeitar aquilo neles que é “contra Deus”, ou seja, seu caráter de objeto de apego e sua função de obstáculo em relação à “única coisa necessária”. Um tal ódio implica para aqueles a quem ele diz respeito uma libertação virtual, ele é portanto, no plano das realidades escatológicas, um ato de amor.
*
“Carregar sua cruz” é manter-se perto da cruz existencial, ou seja: há na Existência o polo “pecado” e o polo “cruz”, o lançar-se cegamente no gozo e o deter-se conscientemente; a “via larga” e a “via estreita”. “Carregar sua cruz” é essencialmente não “seguir o movimento”; é “discernir os espíritos”, é manter-se, incorruptível, nesse aparente nada que é a Verdade. “Carregar sua cruz” é portanto suportar esse nada, limiar de Deus; e dado que o mundo é orgulho, egoismo, paixão e falsa ciência, é ser humilde, caridoso, é “morrer” e “tornar-se como uma criança”. Esse nada é sofrimento na medida em que nós somos orgulho e que, por esse fato, ele nos faz sofrer; o fogo do purgatório não é outra coisa: é nossa substância que arde, não porque Deus quer nos machucar, mas porque ela é o que ela é; porque ela é “deste mundo”, e na medida em que o é.
A cruz é a divina fissura pela qual a Misericórdia se escoa do Infinito.
O centro da cruz, ali onde as duas dimensões se cruzam, é o mistério do abandono: é o “momento espiritual” onde a alma se perde a si mesma, onde ela “não mais é” e onde ela “ainda não é”. Como toda a Paixão do Cristo, esse grito é, não apenas um mistério de dor ao qual o homem deve participar pela renúncia, mas também, ao contrário, uma “abertura” que só Deus podia operar, e que ele operou porque ele era Deus; e é por isso que “meu jugo é suave e meu fardo, leve”. A vitória que incumbe ao homem já foi levada por Jesus; ao homem não resta mais que abrir-se a essa vitória, que será a sua.
*
Aquilo que é “abstração” no lógico torna-se quase corporal no Verbo feito carne. A lança do centurião Longino acaba de trespassar o flanco do Cristo; uma gota do sangue divino, tendo escorrido ao longo da lança, toca a mão do homem. Nesse momento, o mundo desaba para ele como uma casa de vidro, as trevas existenciais se dilaceram, sua alma tornou-se como uma chaga que chora. Ele está como que ébrio, mas de uma embriaguez fria e pura; toda sua vida é doravante como um eco que repete mil vezes esse único instante ao pé da cruz. Ele acaba de renascer, não porque “compreendeu” a Verdade, mas porque a Verdade apoderou-se dele e o arrancou, com um gesto “concreto”, deste mundo. O Verbo feito carne é a Verdade tornada de certa forma matéria, mas é ao mesmo tempo uma matéria transfigurada e revalorizada, uma matéria que é luz ardente, e que transforma e liberta.
Frithjof Schuon, capítulo do livro Sentiers de Gnose, La Place Royale, 1987, pp. 171-176. Tradução de Beatriz Becker.
Imagem: La Majestat Battló, estátua em madeira do século 12, no Museu de Arte Nacional da Catalunha, Espanha. Foto de Roger Ferrer Ibáñez, colhida na Wikimedia Commons, neste link.