René Guénon: Definições

por Frithjof Schuon

A definição da obra de René Guénon se apoia em quatro termos: intelectualidade, universalidade, tradição e teoria.

A obra é “intelectual”, pois diz respeito ao conhecimento — no sentido profundo e integral desse termo — e o considera em conformidade com sua natureza, ou seja, à luz do Intelecto, que é essencialmente suprarracional; ela é “universal, pois considera as formas tradicionais em função da Verdade una, adotando ao mesmo tempo, conforme a oportunidade, a linguagem de determinada forma. Por outro lado, a obra guénoniana é “tradicional”, no sentido de que os dados fundamentais que ela transmite estão estritamente em conformidade com o ensinamento das grandes tradições, ou com uma delas quando se trata de uma forma particular; por fim, a obra é “teórica”, pois ela não tem diretamente em vista a realização espiritual; ela inclusive evita assumir esse papel de um ensinamento prático, de colocar-se, por exemplo, no terreno dos ensinamentos de um Ramakrishna.

E isso nos leva à questão do conteúdo: esse converge essencialmente para a doutrina metafísica — não para o que pode ser chamado de “vida espiritual ” — e se subdivide em quatro grandes temas: doutrina metafísica, princípios tradicionais, simbolismo e crítica do mundo moderno.

Falemos primeiramente da doutrina metafísica. Aqui, o mérito de Guénon é não simplesmente tê-la exposto, mas acima de tudo ter explicado sua verdadeira natureza, distinguindo-a nitidamente das “filosofias” no sentido corrente deste termo; esse sentido não é, sem dúvida, exclusivo, mas ele marca, em todo caso, um forte predomínio do raciocínio sobre a intuição intelectual, ao ponto de reduzir esta última a uma espécie de “acidente” mais ou menos inconsciente. É esse o grande mérito da tese guénoniana: o de ter lembrado o que o pensamento moderno, assim como o pensamento “clássico”, esqueceu ou quis esquecer, a saber, a distinção essencial entre intuição intelectual e operação mental ou, em outras palavras, entre o Intelecto, que é universal, e a razão, que é individual e mesmo especificamente humana. E isso fecha a porta a todas as especulações desprovidas de qualquer caráter transcendente; de fato, para atingir a verdade, é preciso despertar em si mesmo — se isso é possível — a faculdade intelectiva, e não se esforçar para “explicar” por meio da razão realidades que não se “veem”; ora, a maioria das filosofias parte de uma espécie de cegueira axiomática, daí suas hipóteses, seus cálculos, suas conclusões, todas essas coisas sendo desconhecidas na metafísica pura, a dialética desta estando baseada na analogia e no simbolismo.

A doutrina metafísica não é, no fundo, senão a ciência da Realidade e da ilusão, e se apresenta, a partir do estado terrestre — portanto com sua extensão cosmológica —, como a ciência dos graus existenciais ou principiais, conforme o caso: por um lado, ela distingue entre o Princípio e a Manifestação — ou “Deus” e o “Mundo” — e, por outro lado, no próprio Princípio, entre o Ser e o Não-Ser, ou, em outras palavras, entre o Deus pessoal e a Divindade impessoal; na Manifestação, a metafísica – agora tornada cosmologia – distinguirá entre o informal e o formal, este último se dividindo, por sua vez, em dois estados, um sutil ou anímico e o outro grosseiro ou corporal.

O segundo grande tema tratado por Guénon é a tradição ou, mais precisamente, o conjunto de princípios que a constituem, seja qual for a sua forma; pode-se dizer que tradição é o que vincula tudo que é humano à Verdade divina. Guénon enfatiza não somente a distinção entre o que é tradicional e o que não é, mas também, no próprio plano da tradição, a distinção entre seus aspectos fundamentais, o exoterismo e o esoterismo, este último ligando-se de uma maneira direta à doutrina metafísica.

Quanto ao terceiro grande tema da obra guénoniana, o simbolismo, ele se impõe porque a expressão natural e universal da metafísica é o símbolo: expressão natural porque residindo na natureza das coisas e universal porque suscetível de aplicações ilimitadas em todas as ordens do Real. O simbolismo tem duas vantagens sobre o raciocínio: em primeiro lugar, longe de opor-se artificialmente àquilo que ele expressa, ele lhe é, ao contrário, um aspecto ou uma “encarnação”; em segundo lugar, em vez de só sugerir um único aspecto de uma dada realidade, ele manifesta vários aspectos dela ao mesmo tempo e apresenta as verdades em suas várias conexões metafísicas e espirituais, abrindo, por conseguinte, “dimensões” incomensuráveis à contemplação.

Finalmente, a obra guénoniana abrange, como quarto grande tema, a crítica do mundo moderno; ela não poderia deixar de incluí-la, dada, de uma parte, sua natureza, que é intelectual e tradicional, e, de outra, sua esfera de ação, que é precisamente este mundo desprovido de intelectualidade e de tradição enquanto fatores determinantes. Esta crítica do modernismo é apresentada sob dois aspectos, um geral e outro detalhado; em outras palavras, o autor critica, por um lado, as tendências específicas da civilização na qual vivemos e, por outro, determinadas expressões desta civilização, como, por exemplo, as diferentes formas do “neoespiritualismo”.

Como toda obra de envergadura excepcional, a de René Guénon pode dar margem a diferentes interpretações, não quanto à sua verdade global, mas quanto a seu caráter e ao seu alcance.

O papel de René Guénon era mais o de estabelecer princípios do que o de mostrar suas aplicações: é na enunciação dos princípios que seu gênio intelectual se exerce com uma maestria incontestável; mas, admitir sem reservas todos os exemplos e todas as deduções que o autor nos propõe no curso de seus numerosos escritos, isso nos parece ser uma questão de opinião, até mesmo de fé, e isso tanto mais porque o conhecimento dos fatos depende de contingências que não poderiam intervir no conhecimento principial. Se o Intelecto é, por assim dizer, soberano e infalível em seu próprio terreno, ele só pode exercer seu discernimento no plano dos fatos de uma maneira condicional; além disso, Deus pode intervir nesse plano com vontades particulares e por vezes imprevisíveis, das quais o conhecimento principial só pode se inteirar a posteriori. O plano dos fatos está, sob certos aspectos, no inverso do dos princípios, no sentido de que ele inclui modalidades e imponderáveis que se encontram no extremo oposto do rigor bem “matemático” das leis universais; ao menos ele é assim em aparência, pois é evidente que os princípios universais não se contradizem; mesmo sob o véu da inesgotável diversidade do possível, sua imutabilidade é sempre discernível, contanto que a inteligência se encontre nas condições requeridas para poder discerni-la. Isto significa que a “intuição intelectual” pode depender de fatores muito complexos, que, algumas vezes, parecem não ter conexão com as realidades que a inteligência propõe ao entendimento.

Seria prestar um pobre serviço às verdades das quais René Guénon escolheu ser o intérprete dissimular o que, em sua obra, pode ser uma pedra de tropeço para alguns e uma fonte de confusão para outros, como a experiência nos tem mostrado; sem querer entrar em detalhes, restringir-nos-emos a mencionar o que segue: na medida em que palavras como “intelectualidade” e “espiritualidade” são aplicáveis a diferentes realidades, pode-se dizer que a obra de Guénon é “intelectual” e que é melhor não buscar nela nada senão “ideias”; além disso, não se deve confundir o “temperamento” particular do autor com o Oriente, nem com a mentalidade tradicional em geral. Acrescentaríamos aqui que se pode considerar surpreendente, como Coomaraswamy o faz, o exclusivismo às vezes excessivo da terminologia guénoniana; este aspecto é indubitavelmente análogo ao caráter antes “matemático” — e não “visual” — do pensamento de Guénon, no que diz respeito ao modo de operação , não ao conteúdo intelectual.

Se, no plano doutrinal, a obra de Guénon é única, talvez não seja inútil especificar que isto não provém de uma natureza mais ou menos “profética” – uma proposição que o próprio Guénon já rejeitara –, mas sim de uma excepcional conjuntura cíclica, cujo aspecto temporal é este “fim de um mundo” no qual vivemos e cujo aspecto espacial – em função, aliás, do aspecto cíclico – é a aproximação forçada das diferentes civilizações; pode-se dizer assim que, para o Ocidente, Guénon é o intérprete providencial desta conjuntura, ao menos no nível da doutrina; dizemos “intérprete”, mas poderíamos também acrescentar “vítima”, no sentido de que esta função demandava atividades e experiências “unilaterais” ou “desproporcionais” que não ocorreram sem deixar marcas profundas no homem e em seus escritos. Seja como for, tal obra teria sido sem objeto para os homens da Idade Média, em primeiro porque o “fim de um mundo” ainda estava demasiado remoto e a sabedoria não era negligenciada como é hoje, como resultado das tendências modernas; e, em segundo lugar, porque as perspectivas espirituais da Ásia eram na prática inexistentes para o Ocidente.

Os modos de participação na obra de Guénon são necessariamente diversos: alguns leitores se inspiraram nela de uma maneira mais ou menos parcial ou superficial, enquanto outros se deixaram convencer pela própria essência da obra; alguns têm sido “convertidos” dos erros correntes de nosso tempo; outros ainda, sem ter necessidade de uma “conversão”, encontraram em Guénon o que já pensavam, exceto pela metafísica, que ninguém pode tirar de si mesmo, e que eles receberam de Guénon – à parte outras fontes possíveis, mas, na prática, muito pouco explícitas – como o próprio Guénon recebeu do Oriente e como todo oriental recebeu de um outro oriental. Em todo caso, o papel de Guénon consiste essencialmente numa função de transmissão e comentários, não de readaptação inspirada: “Eu não tenho outro mérito”, ele nos escreveu em uma carta, “senão o de haver exposto algumas ideias tradicionais com o melhor da minha capacidade.” Se esta definição é de fato demasiadamente modesta ao não fazer menção ao elemento especulativo na obra guénoniana, nem ao caráter fundamental das ideias que ele expôs, ela revela, não obstante, sua intenção e sua natureza.

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