A beleza também leva a Deus

Mencionamos (…) o isolamento do homem-centro em face da absurdez do mundo; ora, o fato de que seus comportamentos são eventualmente os mesmos que os do homem-periferia poderia dar a impressão de uma solidariedade com a ambiência mundana, mas essa é uma aparência enganosa, dado que maneiras de agir semelhantes podem esconder intenções dissemelhantes. Além de que o homem superior pode se mostrar “como os outros” para mascarar sua superioridade [1], precisamente — quer por caridade, quer por “instinto de conservação” —, há isto a considerar, e é o essencial: no homem contemplativo, o prazer não incha a individualidade, ele, ao contrário, convida a uma dilatação transpessoal, de modo que a “consolação sensível” dá lugar a uma abertura para o alto e não a um inchaço para baixo. Uma graça análoga intervém, aliás, em todo crente sincero quando ele aborda o prazer “em Nome de Deus” e se abre, assim, à Misericórdia: ele “convida” Deus e ao mesmo tempo busca refúgio junto a ele.

Extrinsecamente — em relação à fraqueza humana —, a norma moral pode ser “contra a natureza”; intrinsecamente, ela não o poderia ser. “Eles não têm vinho”, disse Maria nas bodas de Caná, com uma intenção que não podia se limitar à “carne”, não mais do que os simbolismos do Cântico dos Cânticos ou do Gîta Govinda. A ascese é útil ou necessária ao homem tal como ele é feito — ao homem excluído dos Paraísos terrestre e celeste —, mas a perspectiva ascética não poderia com isso ter o apanágio da verdade total, nem, por consequência, da legitimidade pura e simples. Os partidários de um ascetismo desconfiado ignoram usualmente que “il y a fagot et fagot”, como diria Molière: sem dúvida, toda diversão é um prazer, mas disso não se segue que todo prazer seja uma diversão, sem o que todo casamento seria coisa frívola, incluindo as bodas de Caná.

Levam a Deus não somente a verdade, o mérito e o sacrifício, mas também a beleza; a própria criação dá testemunho disso, e depois a arte sacra, incluindo a liturgia, as formas do culto. Afastam de Deus não somente o erro, o crime e a luxúria, mas também a feiura; não quando ela é acidental, pois então ela é neutra [2], mas quando é desejada e produzida, como é o caso deste universo de feiura organizada e desesperante que é o mundo moderno. De resto, o vício é uma espécie de feiura, como a virtude é uma espécie de beleza; “és toda bela, minha amada, não há nenhum vício em ti.”

A deiformidade do homem implica a beleza moral, nem que seja — de facto — a título de potencialidade. O pneumático é o homem que se identifica a priori a sua substância espiritual e por consequência permanece sempre fiel a si mesmo; ele não é uma máscara que ignora quem a porta, como o é o homem encerrado nos acidentes.

(Frithjof Schuon, Le Jeu des Masques, pp 46-48.)

[1] O mestre está ensinando a nós, homens comuns, como se comportam os verdadeiros espirituais. (N. do T.)

[2] E neutralizada por um contexto de beleza; é esse, sob certo aspecto, o sentido das quimeras sobre as catedrais. Por outro lado, não se censura a um homem o ser feio, mas pode-se censurar-lhe a feiura de sua expressão.

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