
Inteligência total, vontade livre, sentimento capaz de desinteressamento: eis as prerrogativas que colocam o homem no ápice das criaturas terrestres. Total, a inteligência toma conhecimento de tudo o que é, no mundo dos princípios bem como no dos fenômenos; livre, a vontade pode escolher mesmo o que é contrário ao interesse imediato ou ao agradável; desinteressado, o sentimento é capaz de se olhar desde fora e, não menos, de se pôr no lugar dos outros. Todo homem o pode em princípio, enquanto que o animal não o pode, o que derruba a objeção de que nem todos os homens são humildes ou caridosos: por certo, os efeitos da “queda” enfraquecem as prerrogativas da natureza humana, mas eles não as poderiam abolir sem abolir o próprio homem. Dizer que o homem é dotado de uma sensibilidade capaz de objetividade significa que ele possui uma subjetividade não encerrada em si mesma, mas aberta para as outras e para o Céu; de fato, todo homem normal pode se encontrar numa situação em que ele manifestará espontaneamente a capacidade humana de compaixão ou de generosidade, e todo homem é dotado, em sua substância, do que podemos chamar de “instinto religioso”.
Inteligência total, vontade livre, sentimento desinteressado; e, por consequência: conhecer o Verdadeiro, querer o Bem, amar o Belo. “Horizontalmente”, a Verdade diz respeito à ordem cósmica, portanto fenomenal; “verticalmente”, ela diz respeito à ordem metafísica, portanto principial. E o mesmo vale para o Bem: por um lado, ele é prático, secundário, contingente; por outro lado, ele é espiritual, essencial, absoluto. E o mesmo vale, ainda, para a Beleza, que à primeira vista é exterior, e ela é então a qualidade estética, a da natureza virgem, das criaturas, da arte sacra, do artesanato tradicional; mas ela é, com maior razão, interior, e é então a qualidade moral, a nobreza de caráter. Segundo uma sentença islâmica, “Deus é belo e Ele ama a beleza”; o que significa implicitamente que Deus nos convida a participar de sua natureza – do Sumo Bem – pela Virtude, no contexto da Verdade e da Via.
Idealmente, normativamente e vocacionalmente, o homem é a Inteligência, a Força e a Virtude; ora, é importante considerar a Virtude sob dois aspectos, um “terrestre” e outro “celeste”. Social, ela exige a humildade e a compaixão; espiritual, ela consiste na temor e no amor a Deus. O temor implica a resignação à Vontade divina; o amor implica a confiança na Misericórdia.
O que é temor e amor para com Deus, torna-se – mutatis mutandis – respeito e benevolência para com o próximo; benevolência de princípio para com todo desconhecido, não fraqueza para com o indigno conhecido. O amor implica o temor, pois só se pode amar o que se respeita; a confiança na Misericórdia divina e a familiaridade mística com o Céu não admitem, com efeito, nenhuma desenvoltura; é o que já resulta dessa qualidade crucial que é o senso do sagrado, no qual o temor e o amor se encontram.
Nas experiências estética e erótica, o ego se extingue, ou se esquece de si mesmo, diante de uma grandeza que não é ele próprio: amar uma realidade digna de ser amada é uma atitude de objetividade que a experiência subjetiva da fascinação não poderia abolir. O que quer dizer que o amor tem dois polos, um subjetivo e outro objetivo; é o segundo que deve determinar a experiência, dado que ele é a razão de ser da atração. O amor sincero não é uma maneira desviada de se amar a si mesmo; ele é baseado num objeto digno de admiração, de adoração, de desejo de união; e a quintessência de todo amor, e mesmo de toda virtude, só pode ser o amor a Deus.
Frithjof Schuon, Le Jeu des Masques [O Jogo das Máscaras], Editions l’Age d’Homme, Lausanne, Suíça, 1992, capítulo “Prerrogativas do estado humano”, pp. 9-11. #frithjofschuon #sophiaperennis