Toda religião é, interiormente, a doutrina do “Si” único

O Verbo é, em cada religião, a manifestação terrestre do Intelecto incriado ou Logos.

Compreender-se-á melhor a natureza da pura intelecção levando em conta isto: o Intelecto, que é Um, apresenta-se sob três aspectos fundamentais — ao menos na medida em que nos situamos na “ilusão separativa”, o que é caso para toda criatura enquanto tal —, a saber, primeiramente, o Intelecto divino, que é Luz e puro Ato; em segundo lugar, o Intelecto cósmico, que é receptáculo ou espelho em relação a Deus e luz em relação ao homem; e, em terceiro lugar, o Intelecto humano, que é espelho em relação aos dois precedentes e luz em relação à alma individual [1]; é preciso ter o cuidado, por consequência, de distinguir no Intelecto — exceto no Intelecto divino — um aspecto “incriado”, que é essencial, e um aspecto “criado”, que é “acidental” ou antes “contingente” [2].

Esta visão sintética das coisas “resulta”, se assim podemos dizer [3], do princípio da não-alteridade: o que não é “outro” de forma nenhuma é “idêntico” sob o aspecto considerado, de modo que a inteligência enquanto tal — tanto a de um homem que se conforma à verdade como a de uma planta que se volta irresistivelmente para a luz — “é” a de Deus; a inteligência só é “humana” ou “vegetal” sob o aspecto de seus limites específicos, e o mesmo vale, aliás, para todas as qualidades positivas, portanto para todas as virtudes, que são sempre as de Deus, não em sua acidentalidade redutora, está claro, mas em seu conteúdo ou sua essência.

Estas considerações permitem entrever que as grandes virtudes evangélicas — caridade, humildade, pobreza, infância — têm seu fim último no “Si” [4]; elas são uma série de negações do inchaço ontológico que é o ego, negações não individualistas e portanto contraditórias [5], mas intelectivas, ou seja, que tomam seu ponto de partida no próprio Si, em conformidade com a natureza profunda das coisas. De maneira análoga, se o sábio não poderia se satisfazer, em definitivo, com uma beatitude criada — “o Paraíso (criado) é uma prisão para o Súfi” —, não é por pretensão ou por ingratidão, longe disso, mas porque o Intelecto — “descido do Céu” — “é o Si”; e, neste sentido, toda religião é “cristã”; cada uma delas postula, por um lado, o Intelecto incriado — ou o Logos, “Palavra incriada” de Deus, o que é equivalente se se leva em conta a “irradiação” do Intelecto — e, por outro lado, a manifestação terrestre desse Verbo e a libertação que ela oferece; toda tradição plena postula, em última análise, a “extinção” do ego em vista do “Eu” divino, algo para o qual a Lei sagrada fornece a moldura elementar, ainda que ela [a Lei] deva permanecer “dualista” em sua letra comum por causa das necessidades da maioria e, por consequência, em razão da psicologia social.

“Interiormente”, toda religião é a doutrina do Si único e de sua manifestação terrestre, assim como o caminho da abolição do falso si, ou o caminho da reintegração misteriosa de nossa “personalidade” no Protótipo celeste; “exteriormente”, as religiões são “mitologias” — ou, mais precisamente, simbolismos — dispostas em vista dos diferentes receptáculos humanos e manifestando, com suas limitações, não uma contradição in divinis, mas, ao contrário, uma misericórdia. Uma doutrina ou uma via é exotérica na medida em que está obrigada a levar em conta o individualismo — fruto menos da paixão bruta do que do domínio da paixão sobre o pensamento — e a velar a equação Intelecto-Si por meio de um “conjunto de imagens” mitológico e moral, quer haja aí um elemento de historicidade, quer não; e ela é esotérica na medida em que comunica a própria essência de nossa posição universal, de nossa situação entre o nada e o Infinito. O esoterismo visa a natureza das coisas, não somente nossa escatologia humana; ele vê o Universo, não a partir do homem, mas “a partir de Deus” [6].

Schuon, Sentiers de Gnose, La Place Royal, 1987, 86-89


Notas

[1] As palavras evangélicas como “Eu sou a luz do mundo” ou “ninguém chega ao Pai se não for por mim” aplicam-se nesses três sentidos.
[2] O mistério do “Espírito universal” (Ar-Rûh) é, no Islã, que não se pode dizer dele nem que seja “criado”, nem que seja “incriado”; o mesmo mistério se encontra no Intelecto que chamamos de “humano”, e que um Mestre Eckhart definiu de maneira ambígua.
[3] O uso frequente das aspas se impõe porque as expressões simplesmente lógicas nem sempre marcam o caminho — falta muito para que isso aconteça — para a realidade espiritual. É verdade também que o sentido de muitas palavras se estreitou com o uso, ou que ele dá lugar a associação de ideias mais ou menos restritiva, sem esquecer que o leitor moderno lê menos facilmente “nas entrelinhas” do que o fazia o leitor antigo, o que pede mais explicitações e nuances.
[4] Poderíamos dizer o mesmo dos mandamentos do Decálogo: cada um deles assinala em última análise um aspecto do Si, e cada transgressão revela um aspecto do ego enquanto tal. O “Povo eleito” é a alma “naturalmente” idólatra e revoltada, mas “sobrenaturalmente” salva pelo Messias, que é a Graça ou o Intelecto.
[5] O complexo de culpabilidade e a crispação de humildade são a expressão mais comum dessa contradição. Uma atitude é falsa na medida em que ela vai contra a verdade; a verdadeira humildade, a que é a mais eficaz, é um “não-orgulho” impessoal que se mantém independente da alternativa “humilhação-bajulação” e escapa de toda preocupação malsã com o “eu”. As virtudes profundas estão centradas em Deus, não no homem.
[6] “É para alguns homens escolhidos, admitidos a passar da fé à gnose, que os santos mistérios da sabedoria foram conservados sob o véu das parábolas” (Clemente de Alexandria, Stromata, VI, 126). O que significa, não que as parábolas não contenham um sentido destinado a todos os cristãos e que deva ser oculto provisoriamente para os descrentes, mas que elas veiculam ao mesmo tempo um sentido propriamente gnóstico ou metafísico, portanto incompreensível para a maioria dos próprios cristãos. A ordem de Cristo de não jogar pérolas aos porcos nem dar o sagrado aos cãos não pode ter somente um sentido temporalmente limitado e reduzido a uma questão de oportunidade exterior.