Realizar em si mesmo a Paixão

Cruz de San Damiano (séc. XII): o crucifixo que falou com São Francisco de Assis.

Nesta passagem, Schuon comenta os episódios da vida de Cristo em relação à vida espiritual do homem que segue o método da Invocação do Nome divino. Embora várias referências possam parecer soltas, por estar a passagem fora de seu contexto maior, entendo que mesmo assim vale a pena publicar este texto aqui, por ocasião desta Semana Santa. [N. do E.]


Em termos iniciáticos, a Anunciação é a entrada de Deus no homem, tal como acontece nos Sacramentos, que conferem o Espírito Santo ou Cristo; Deus se tornou verdadeiro homem para que o homem possa se tornar verdadeiro Deus. A Visitação é a conformidade da alma à “Presença real”, a consciência que tem o homem de “portar” a Divindade, a concentração devocional e alegre de todo o ser na “Semente divina”. A Natividade de Cristo é a invocação do Nome salvífico — aquela que actualiza a virtualidade espiritual implicada na “Presença”. A seguir vem a apresentação de Cristo no Templo: o homem, purificado e santificado por esta Presença de Deus, não deixa de se considerar um mero homem e permanece sempre consciente, a despeito dos êxtases da Graça, de suas limitações como criatura e também das limitações que o suporte divino — o Nome — contém em sua “materialidade” [1]. E o encontrarem o Menino Jesus no Templo: depois da “secura” em que o Nome divino deixou a alma, o Nome é revelado como a fonte misteriosa de toda sabedoria.

Quanto aos Mistérios Dolorosos: a agonia no Getsêmani é o esquecimento da “Presença Real”, o negligenciar a “Semente divina”, torpor e inadvertência, como visto, além do mais, no sono dos discípulos. A Flagelação: isto se refere a ações que são incompatíveis com a Presença divina; é a “dissipação”. A Coroação de Espinhos: é a vaidade humana, sua tendência a atribuir a si mesma glórias que pertencem somente a Deus; é o erro de derivar alguma vaidade da Graça.

Antes de continuar, é necessário lidar com uma possível objeção, a saber, a de que esta interpretação — que parece evidente, dado que está na natureza das coisas — não envolve a participação do contemplativo nos sofrimentos de Cristo; mas essa crítica não se justifica, dado que os defeitos mencionados pedem virtudes, que por definição implicam mortificações e que assim recapitulam os sofrimentos do Verbo feito carne. Portanto, a coroa de espinhos — infligida ao Cristo como resultado, em certo sentido, da vaidade humana — torna-se, para o contemplativo, abnegação, esquecimento de si, atribuição de toda glória a Deus. É portanto necessário, por um lado, realizar em si mesmo a Paixão de Cristo e, por outro lado, evitar infligi-la a ele; em outras palavras, todo aquele que poupa a Cristo (microcósmico, interior) a Paixão deve assumi-la para si mesmo (no mesmo sentido), e todo aquele que não a assume para si mesmo a inflige a Cristo. Também o Carregar a Cruz tem um sentido microcósmico: Jesus, vaso da graça redentora, toma para si o peso de nossa ignorância, de nosso individualismo; é o Nome divino que absorve — e, em sua Infinitude, aniquila — as misérias humanas e desta forma purifica o coração do homem para a visão beatífica. E a crucifixão: é o desejo ou a paixão que “crucifica” a “Presença Real” e imobiliza sua “vida”.

Quanto aos Mistérios Gloriosos, a Ressurreição é a consciência de que só o Divino é real, uma consciência que desabrocha pela virtude do Nome de Deus. A Ascensão: a alma se torna consciente de sua identidade essencial com o Divino. Pentecostes: o Divino entra nos pensamentos e nas ações do homem “deificado”. A Assunção da Santíssima Virgem: a alma se torna extinta em Deus. A Coroação da Santíssima Virgem: a alma desperta em Deus, no “Aspecto Divino” do qual ela tinha sido só uma sombra; a Virgem coroada pelo Verbo — com uma coroa “incriada” — é, portanto, a alma reintegrada em sua Infinitude essencial, em sua Realidade, da qual ela tinha estado separada somente de um modo ilusório, como se num sonho; e, acrescentemos, é por isso que a Virgem foi “criada antes da criação”: a alma deve se “tornar o que ela é”, ou seja, “O que é”.


[1] O Homem-Deus é a Divindade, mas a Divindade não é o Homem-Deus.


Texto de Frithjof Schuon, extraído The Fullness of God: Frithjof Schuon and Christianity, org. James Cutsinger, World Wisdom, 2004, pp. 185-186.