Gostaria de trazer à atenção do leitor dois extratos do livro de Titus Burckhardt intitulado Introduction aux Doctrines Ésotériques de l’Islam, publicado por Dervy-Livres, Paris, em 1985.
Os dois extratos tratam da seguinte questão: o conhecimento doutrinal basta para a realização espiritual? O grande sábio suíço diz que não, e que, se não há uma via espiritual, a compreensão das verdades espirituais despertada pelo estudo da doutrina pode facilmente, aos poucos, se desvanecer.
Vejamos o que diz Burckhardt:
“O presente trabalho é uma introdução ao estudo da doutrina sufi. Mas é importante antes de tudo definir o ponto de vista segundo o qual abordamos este tema: este ponto de vista não é o da erudição pura e simples, seja qual for o interesse científico dos resumos doutrinais que figuram neste estudo; queremos sobretudo contribuir com os esforços daqueles que, no mundo moderno, procuram compreender as verdades permanentes e universais de que toda doutrina sagrada é um modo de expressão.
“Digamos logo de início que a ciência acadêmica é uma ajuda totalmente secundária e muito indireta para que se assimile o conteúdo intelectual das doutrinas orientais, e, aliás, nem é esse o objetivo de um método científico, que aborda as coisas necessariamente desde o exterior, portanto sob seu aspecto puramente histórico e contingente. Há doutrinas que só se compreendem ‘desde o interior’, por um trabalho de assimilação ou de penetração cujas modalidades, que são essencialmente intelectuais [1], superam, por isso mesmo, o pensamento discursivo; este chega mesmo a se tornar um obstáculo na medida em que ele está marcado por convenções mentais, sem falar das ideias preconcebidas agnósticas e evolucionistas que determinam o espírito da maioria dos ocidentais. É por esta razão que quase todos os eruditos europeus que estudaram o Sufismo se enganam a respeito de sua verdadeira posição: o homem de cultura moderna, com efeito, não mais está habituado a pensar em símbolos (…) a formação universitária e o saber livresco autorizam aqui a ocupar-se de coisas que, no Oriente, estão naturalmente reservadas àqueles que são dotados de intuição espiritual e que se consagram ao estudo dessas coisas em virtude de uma afinidade real e sob a direção dos herdeiros de uma tradição viva.” (pp. 9-10)
“A assimilação das verdades doutrinais é indispensável; contudo, ela não opera por si só uma transformação na alma, salvo em certos casos muito excepcionais, em que a alma está tão bem disposta à contemplação que elementos de doutrina bastam para a fazer nela [na contemplação] mergulhar, como uma solução supersaturada que, sofrendo um mínimo impulso, pode subitamente se transmutar em cristais. Em si, a inteligência doutrinal é puramente estática; ela pode livrar a alma de certas tensões, mas não pode realmente transformá-la sem o concurso da vontade, a qual representa o elemento dinâmico da via. Ocorre mesmo, muito facilmente, que a intuição das verdades metafísicas, a princípio despertada pelo estudo da doutrina, se esfarele pouco a pouco no espírito daquele que, crendo possuir essas verdades, só adere a elas mentalmente, como se a vontade não devesse tomar nisso nenhuma parte. Ora, a vontade deve tornar-se ‘pobre’ perante Deus, o que equivale a dizer que ela deve se conformar à virtude espiritual: esta representa uma espécie de concentração latente da alma, uma base sólida e natural da concentração diretamente operativa, cujo objetivo é transpassar o véu da consciência continuamente absorvida pela corrente das formas. ‘A virtude espiritual (al-ihsân) – disse o Profeta – é que tu adores a Deus como se tu O visses, e, se tu não O vês, Ele no entanto te vê’.
“Conforme a natureza particular do ‘caminho’ (…) a compreensão doutrinal exerce um papel mais ou menos importante; ela não exige necessariamente um saber doutrinal muito extenso, pois é em profundidade, não na superfície, que ela deve se desenvolver.” (pp. 115-117)
Nota [1]: Por ‘intelecto’ entendemos não a razão ou o pensamento discursivo, mas o ‘órgão’ do conhecimento imediato, da certeza, ou seja, a pura inteligência, que supera a razão. Este ‘órgão’, a teologia ortodoxa, particularmente Máximo, o Confessor, chama de Noûs.