Um novo ensaio de Schuon

Oferecemos ao leitor a tradução inédita, do francês, de um pequeno mas muito bonito ensaio de Schuon que faz parte do livro O Jogo das Máscaras (Le Jeu des Masques, Editions L’Age d’Homme, Suíça, 1992).

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Ter consciência do Real

A razão de ser da inteligência humana e, consequentemente, do homem é a consciência do Absoluto, além, mas também no interior, da consciência das contingências. Se é para se distrair em futilidades ou para levar uma vida de formigas, não valeria a pena nascer no estado humano, e o fenômeno da inteligência humana – reduzida a um luxo inútil – não seria explicável.

Em conexão com a vocação do homem, é necessário compreender corretamente o argumento ontológico de Santo Anselmo: ele não significa que a capacidade de imaginar não importa o quê prove a existência da coisa imaginada; ele significa que a capacidade de conceber Deus prova uma envergadura espiritual que só se explica pela realidade de Deus. Segundo o mesmo Doutor, a fé vem antes do conhecimento (credo ut intelligam); em suma, a fé é apresentada aqui como a qualificação para a intelecção, o que quer dizer que, a fim de poder compreender, é preciso ter o senso do transcendente e do sagrado. Mas o inverso também é verdade: “Eu compreendo a fim de que eu acredite” (intelligo ut credam) – o que ninguém jamais disse – poderia significar que antes de possuir uma certeza quase existencial das realidades transcendentes é importante apreender a doutrina. Sob certo aspecto, a predisposição do coração é a chave para a verdade metafísica refletida na mente; sob outro aspecto, este conhecimento conceitual é a chave da ciência do coração.

“Bem-aventurados os que terão acreditado sem ter visto”: trata-se aqui do homem exterior, imerso no dédalo dos fenômenos. A fé é a intuição do transcendente; a incredulidade provém da camada de gelo que cobre o coração e exclui essa intuição. Em linguagem mística, o coração humano é seja “líquido”, seja “endurecido”; ele também já foi comparado a um espelho que está seja polido, seja enferrujado. “Os que terão acreditado”: os que colocam a intuição do sobrenatural acima de um raciocínio rasteiro e separado de suas raízes.

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A vocação do homem, dissemos, é a consciência do Absoluto; a parábola da viúva perseverante e do juiz injusto nos lembra que esta consciência, que é “agora”, deveria ser “sempre”, ou seja, que seu próprio conteúdo exige a totalidade; ela deveria ser “sempre”, sob pena de não ser “nunca”. Contudo, “orar sem cessar”, como quer São Paulo, não poderia implicar uma continuidade perfeita, irrealizável na vida terrena; de fato, a perseverança opera por ritmos – rigorosos ou aproximativos –, e são eles que fazem o papel de perpetuidade. Os vazios inevitáveis entre os atos espirituais são recipientes da graça – os anjos fazem por nós o que não podemos fazer –, de modo que a vida de oração não sofre nenhuma descontinuidade.

Nada nos dá o direito de esquecer o Essencial; por certo, nossa existência terrena está tecida de prazeres e de labores, de alegrias e de pesares, de esperanças e de temores, mas nada disto tem medida comum com a consciência do Absoluto e com nosso dever quase-ontológico de praticá-la. “Deixai os mortos enterrarem seus mortos”, disse Cristo, e acrescentou: “E sigai-me”; a saber, na direção do “reino de Deus que está dentro de Vós” [1].

A fim de sermos assim fiéis a nós mesmos, necessitamos de argumentos irrecusáveis: chaves que nos permitam permanecer na consciência do Sumo Bem a despeito dos problemas do mundo e da alma. O argumento fundamental é que “Brahma é real, o mundo é ilusório” (Brahma satyam jagan mithyâ), o que põe um fim a todas as artimanhas da mâyâ terrena; sem dúvida, este argumento é intelectual e psicologicamente dos mais exigentes, dado que ele pressupõe uma intuição concreta do Real, não apenas uma ideia abstrata; assim, ele deve se acompanhar de outras ideias-chaves, mais próximas de nossa experiência terrena e cotidiana.

No plano de nosso relacionamento humano com Deus, o primeiro argumento que se impõe é a evidência de que o mundo não pode ser diferente do que ele é e que não podemos mudá-lo; que é preciso, portanto, resignarmo-nos ao que não pode não ser, e resistir a toda tentação de revolta – mesmo que inconsciente – contra o destino e contra a natureza das coisas; é o que se chama “aceitar a vontade do Céu”. À qualidade de resignação se junta a de confiança; a Divindade é substancialmente benevolente, sua bondade intrínseca tem primazia em relação a seu rigor quase acidental; estar consciente disto é permanecer na paz e saber que tudo está nas mãos de Deus.

Em muitos casos, pouco importa que nosso justo direito seja salvaguardado; o egoísmo – ou, digamos, a parcialidade de não suportar nenhuma injustiça – é um sério obstáculo em nosso relacionamento com o Céu, e é por isto que Cristo prescreveu amar os inimigos[2]  e oferecer a face esquerda. Em poucas palavras, é preciso saber esquecer-se de si mesmo diante de Deus e em vista de nossos fins últimos, e isto tanto mais quanto, em última análise, é só neste clima de desapego que podemos ter acesso à certeza ao mesmo tempo transcendente e imanente de que “a alma não é senão Brahma” (jivo brahmaiva nâparah) [3].

Às qualidades de resignação e confiança deve se juntar a de gratidão: com frequência, a recordação das boas coisas de que gozamos – e das quais, eventualmente, outros não gozam – pode atenuar uma provação e contribuir para a serenidade exigida pela consciência do Absoluto. Outro argumento, por fim, é baseado em nossa liberdade: somos livres para fazer o que queremos fazer, para ser o que queremos ser; nenhuma sedução ou provação pode nos impedir de recorrer à consciência salvífica do Sumo Bem.

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Em nossa consciência de Deus, nosso desejo de libertação se encontra com a vontade de Deus de nos libertar; a oração é ao mesmo tempo uma questão e uma resposta. Se “a beleza é o esplendor do verdadeiro”, o mesmo pode-se dizer da bondade; se o bem tende a se comunicar, é porque ele tende também a nos libertar.

A injunção de Cristo para “amar a Deus com todo o teu coração, com toda o tua alma, com toda a tua força e com toda a tua mente” nos relembra que a consciência do Absoluto é absoluta: que não podemos conhecer e amar Aquilo que é a única coisa que é senão com tudo o que somos. A unicidade do objeto exige a totalidade do sujeito; o que indica que, em última análise, o objeto e o sujeito se encontram na Realidade pura, ao mesmo tempo Essência indiferenciada e Causa suprema, portanto Origem de todas as diferenciações. Quem diz Absoluto, diz Infinito e, por consequência, manifestação e diversidade; e a projeção do Bem implica ontologicamente o retorno ao Bem.

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Discernimento e contemplação; concentração e perseverança; resignação e confiança; humildade e caridade. A espiritualidade é o que é o homem: feita de inteligência, de vontade e de sentimento – as três faculdades tendo a qualidade principial de objetividade, sob pena de não serem humanas –, a espiritualidade tem como elementos constitutivos a Verdade, a Via e a Virtude; esta dando origem a dois polos complementares, a humildade e a caridade, precisamente. A Via está ligada à Verdade; a Virtude está ligada à Verdade e à Via.

A humildade prolonga – em modo moral – o elemento Verdade ou Conhecimento porque este nos ensina a proporção das coisas; o homem não poderia conhecer a Realidade metafísica sem se conhecer a si mesmo. A Caridade, por sua vez, prolonga o elemento Via ou Realização porque este elemento apela essencialmente para a Graça; o homem não poderia merecer a misericórdia sem ser ele mesmo misericordioso. Aquele que se eleva indevidamente a si mesmo será abaixado, e aquele que se abaixa – em conformidade com a natureza das coisas – será elevado; e isto por participação na elevação do Real. E do mesmo modo: aquele que rejeita injustamente seu próximo será rejeitado por Deus, e aquele que aceita seu próximo – em conformidade com a justiça e com a generosidade –,  Deus o aceitará; Ele que está oculto no “próximo” em virtude da onipresença do Si. Ter-se-á compreendido que a caridade se refere mais particularmente à imanência, e a humildade, à transcendência.

A priori, a metafísica é abstrata; mas ela não seria o que é se não desse origem a posteriori a prolongamentos concretos no plano de nossa existência humana e terrena. O Real engloba tudo o que é; a consciência do Real implica tudo o que somos.


[1] O mesmo significado nesta outra sentença: “Quanto a ti, quando orares, retira-te em teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai que está no segredo…” E também: “Todo aquele que põe a mão no arado e olha para trás não está apto para o Reino de Deus.” [2]. É a condenação, não da defesa de um direito vital, mas do excesso na defesa desse direito; justiça não é vingança. [3] Consciência que, por um lado, transcende o ego e, por outro, pertence a sua essência transpessoal.

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