“A corrupção do que é melhor é a pior corrupção”

“A animalidade pode manifestar modos de decadência tanto quanto modos de perfeição, mas a espécie animal não pode decair; só o homem, participando da liberdade divina e criado para escolher livremente Deus, pode fazer mal uso de sua liberdade, sob a influência desse modo cósmico que é o mal. Seja como for – se se pode usar um simbolismo um pouco insólito –, assim como o bumerangue, por sua própria forma, está predestinado a retornar para junto daquele que o lançou, assim também o homem está predestinado, por sua forma, a retornar para junto de seu protótipo divino; quer ele o queira ou não, o homem está ‘condenado’ à transcendência.

“Humanamente falando, o raio cósmico privativo e subversivo não é senão o princeps hujus mundi; a pior das perversões é a do homem, pois que corruptio optimi pessima. A tendência “tenebrosa” e “descendente” não somente se afasta do Sumo Bem, mas também se volta contra ele; de onde a equação entre o diabo e o orgulho. E isto nos permite inserir aqui a seguinte consideração: muito próximos do orgulho estão a dúvida, a amargura e o desespero; o grande mal, para o homem, não é somente afastar-se de Deus, é também duvidar da Misericórdia. É ignorar que mesmo no fundo do abismo a corda de salvamento está sempre presente: a Mão divina está estendida, contanto que tenhamos a humildade e a fé que nos permitem apanhá-la. A projeção cósmica afasta de Deus, mas esse afastamento não pode ter nada de absoluto; o Centro está presente em toda parte.

“Está na natureza do mal insinuar-se em todas as ordens, na medida do possível: toda criatura tem, certamente, o direito de viver na ambiência que a natureza lhe reservou, mas no homem esse direito dá origem aos vícios de exterioridade, de superficialidade, de mundanidade, em suma, de ‘horizontalidade’ ingênua e irresponsável. Mas o obstáculo não está somente na ambiência tentadora, ele já está na condição humana em si, e trata-se do abuso da inteligência: poder-se-ia caracterizá-lo pelos termos titanismo, icarismo, babelismo, cientificismo, civilizacionismo. De resto, não há excesso que não tenha sua fonte indireta em alguma verdade ou realidade: assim, o niilismo e o desespero poderiam se referir, muito abusivamente, à ilusão universal; ou, digamos, ao aspecto de ilusão da projeção cosmogônica. De uma maneira inversamente análoga, o aspecto de identidade, que reduz – ou remete – Mâyâ a Atmâ, dá origem, indireta e caricaturalmente, à “autolatria” de certos pseudo-vedantisnos, e também à idolatria em geral; toma-se a imagem pela coisa real, o eu empírico pelo Si imanente, o psíquico pelo espiritual; quod absit.”

(Frithjof Schuon, Le Jeu des Masques, Editions L’Age d’Homme, Lausanne, 1992.)

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