Uma questão que cria muitas dificuldades na consciência do homem atual é a da danação, mesmo quando tornada menos absoluta pelas reservas metafísicas que se impõem: como pode o ser humano merecer tal desgraça, e que interesse pode ter Deus no castigo? A imortalidade, seja qual for o seu conteúdo – ou sejam quais foram seus riscos – é a medida da majestade quase divina do homem; “a nobreza obriga” [noblesse oblige] . É no mínimo curioso que os homens que são mais preocupados com sua autonomia real ou ilusória queiram ser tratados como irresponsáveis quando se trata de pagar a dívida de sua liberdade; perante o Céu que revela normas e dá ordens, o homem chama atenção para sua liberdade e sua independência, ele reconhece, por consequência, sua responsabilidade; mas ele se declara irresponsável e transfere a culpa para a natureza e para o destino, portanto para Deus – “não fui eu quem criou o mundo” –, tão logo o Céu fale de juízo, ou tão logo seja questão de “reações concordantes”, de justiça imanente, de karma. Uma coisa que deveria fazer refletir – e que o orgulho, sob pretexto de inteligência, impede de levar em consideração – é o fato de que os homens aceitaram por milênios, e sem muita dificuldade, a ideia dos castigos póstumos, o que se explica por seu senso ainda suficientemente intacto da majestade teomórfica do gênero humano; eles sentiam que há algo de absoluto no homem, e também que Deus nos conhece melhor do que nós nos conhecemos a nós mesmos; que Ele não tem como não levar em conta a irresponsabilidade real que nossa natureza comporta. Mas o homem moderno vive abaixo de si mesmo, e ele gostaria de impor ao Céu sua própria avaliação, arbitrária e cômoda, da condição humana; ele gostaria, como sugeriu Voltaire, de “sentar-se sob sua figueira e comer seu pão sem se perguntar o que há nele”; ora, para fazer isso, não há necessidade de ser homem; todo animal consegue fazê-lo sem dificuldade. É nossa natureza deiforme que nos dita nossa conduta; nossa verdadeira natureza é o que Deus nos pede, ou o que, aos olhos do Absoluto, é nosso destino. O fato de que os melhores homens – para dizer o mínimo – nunca se limitaram a “comer seu pão sob uma figueira sem se perguntar nada” prova que o homem voltairiano se engana, que seu sonho é irrealizável e só compromete a ele mesmo; dado que Platão, Virgílio e Santo Agostinho existiram, não mais podemos dizer que o homem é uma cabra ou uma formiga.
(Frithjof Schuon, Trésors du Bouddhisme, p. 65, Nataraj, França, 1997.)