Provação, injustiça, destino

“A injustiça é uma provação, mas a provação não é uma injustiça. As injustiças vêm dos homens, enquanto as provações vêm de Deus; o que, da parte dos homens, é injustiça e, por consequência, mal, é provação e destino da parte de Deus. Temos o direito, ou eventualmente o dever, de combater determinado mal, mas temos de nos resignar à provação e aceitar o destino; isso quer dizer que é preciso combinar as duas atitudes, dado que toda injustiça que sofremos da parte dos homens é ao mesmo tempo uma provação que nos chega da parte de Deus.

“Na dimensão horizontal ou terrestre, podemos escapar do mal combatendo-o e vencendo-o; na dimensão vertical ou espiritual, ao contrário, podemos escapar, senão à provação em si, ao menos ao seu peso, e isso aceitando o mal enquanto vontade divina, ao mesmo tempo em que o transcendemos interiormente enquanto jogo cósmico, como se pode transcender qualquer outra manifestação de Mâyâ. Pois o ruído do mundo não entra no Silêncio divino, que trazemos no fundo de nós mesmos e no qual se extinguem e se reabsorvem, como os acidentes na substância, tanto o mundo quanto o eu.

“O homem tem o dever de se resignar à vontade de Deus, mas ele tem da mesma forma o direito de superar espiritualmente o sofrimento da alma, na medida em que isso lhe é possível; e isso não é possível, precisamente, sem a atitude prévia de aceitação e de resignação, que é a única que liberta plenamente a serenidade da inteligência e que abre a alma ao socorro do Céu.”


Notas: (a) Mâyâ: desdobramento universal, arte divina, potência de ilusão; (b) épreuve, em francês, significa tanto “provação” quanto “prova”.

Carta de data desconhecida. Extraída do livro de cartas de Frithjof Schuon: Vers l’Essentiel – Lettres d’un Maître Spirituel, Ed. Les Sept-Flèches, Lausanne, 2013., pp. 198 e 199.

2 ideias sobre “Provação, injustiça, destino

  1. Fernando Figueira Borgomoni

    Brilhante síntese que aplaca de vez uma falsa contradição criada pelo pensamento mais em voga nos dias atuais: a idéia que as religiões levam ao conformismo, porque aceitam o mal como provação divina. Por conta desse raciocínio, o homem seria mais apático diante do mal quanto mais religioso ele fosse. Não obstante, as grandes religiões estão repletas de exemplos de vidas absolutamente dedicadas ao Bem, muito mais do que qualquer movimento ou tendência moderna, por mais atuante que seja. Conformar-se com a provação, resignar-se, não é uma atitude voltada para a provação em si, é uma atitude antes de mais nada voltada para Deus, é o reconhecimento de que ele é a fonte de nossa vida e de nosso destino e que, como nosso Pai, não nos faltará. Provém dessa fonte de resignação e obediência toda a força que emerge da vida dos Santos e os coloca no patamar mais elevado da luta contra o mal.

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  2. Alberto Queiroz Autor do post

    Caro Fernando, grato pelo comentário. Sim, é possível, dependendo de nossa vocação, lutar contra uma injustiça, contanto que aceitemos de antemão, como diz Schuon, que Deus decida de outro modo. Um dos problemas do homem de hoje é que ele vê tudo horizontalmente, não verticalmente. Não acreditando em Deus e no pós-vida, ao menos não acreditando na prática, ele vê todo sofrimento e a morte em si mesmos, como coisas absolutas. Ora, a morte pode ser a porta para o Paraíso, e os sofrimentos podem ser os degraus que nos purificam e nos levam a essa porta. Tudo neste mundo só tem sentido se medido com o pós-vida. As coisas só são boas se levam ao Bem último, que pode ser a salvação da alma, quando da morte, ou a santidade, a realização espiritual, ainda neste mundo.

    Podemos lembrar, também, que a oração é também ação, e a melhor das ações. De fato, não há coisa melhor que possamos fazer do que orar, como você bem sabe. E, orando, Deus nos esclarecerá se quer que realizemos alguma ação específica, seja de promoção do bem, seja de combate do mal.

    Há uma passagem bonita da vida da irmã Consolata Betrone em que Nosso Senhor Jesus lhe diz que muitos dos que foram lutar na guerra (não me lembro se era a Primeira Grande Guerra) e ali morreram teriam se perdido em vícios se tivessem ficado em suas casas, enquanto que, na guerra, tiveram grande estímulo para se superar, para perder as ilusões com este mundo e se aproximar de Deus. Morreram, mas salvaram suas almas. Ou seja, realizaram o objetivo maior de suas vidas.

    O Profeta disse: “Este mundo é uma ponte; e quem construirá sua casa numa ponte?” (cito de memória). Ora, qual diferença faz termos passado a ponto mais rapidamente ou mais lentamente, contanto que de fato cheguemos à “outra margem”?

    Digo estas coisas — todas as quais aprendi com Schuon — não porque penso que você não as sabe, muito ao contrário. Mas apenas para termos este pequeno diálogo espiritual.

    Esta passagem de Schuon é muito clara, muito bonita. Lembrei-me dela muitas vezes, ao longo dos anos, em diferentes situações.

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