O gosto pela novidade

(…) acontece com muita frequência  que ocidentais mais ou menos próximos do Islã acusem os outros ocidentais de negligenciá-lo e de só ter em relação a ele preconceitos imperdoáveis, em vez de estudá-lo com amor; o que é totalmente injusto e mesmo propriamente absurdo, pois, mesmo fazendo abstração de todos os preconceitos possíveis – os ocidentais, por certo, não são os únicos a tê-los –, é um fato que o Islã rejeita os dogmas do Cristianismo, põe o Alcorão no lugar do Evangelho, o Profeta no lugar do Cristo, e pensa que a religião cristã deveria ceder seu lugar à religião muçulmana; ora, essas opiniões bastam e muito para tornar o Islã inaceitável e mesmo odioso aos olhos dos cristãos. O que importa, do ponto de vista da verdade total – já o dissemos e agora o repetimos – é saber que as teses anticristãs do Islã só têm, fundamentalmente, uma significação simbólica, extrínseca e “estratégica”, e isto em função de uma intenção espiritual positiva que evidentemente não tem relação com fenômenos históricos. A mesma observação se aplica, mutatis mutandis, às teses cristãs que procuram invalidar todas as outras religiões, e assim por diante. Deus quis – não podemos duvidar disso – que mundos religiosos diferentes e divergentes coexistam num mesmo planeta; no interior de um desses mundos, ele não pede contas sobre os outros; e é, aliás, com a mesma “lógica existencial” que cada indivíduo crê ser “eu”. Se Deus quer que haja diversas religiões, Ele não pode querer que uma religião seja a outra, e, portanto, cada uma deve ter barreiras sólidas.

Nas condições normais, o muçulmano só tem uma única religião, que o envolve e o penetra a tal ponto em que lhe é impossível sair dela, a não ser por apostasia; o leitor se surpreenderá com esse truísmo, mas verá imediatamente sua função se acrescentamos que o cristão médio, ao contrário, parece ter, na prática, três religiões ao mesmo tempo, em primeiro lugar o Cristianismo, depois a “civilização” e, por fim, a “pátria” ou a “nação” ou a “sociedade”, ou outra ideologia política qualquer, conforme as flutuações da moda ou conforme o meio; a religião propriamente dita é posta num canto, os reflexos humanos são compartimentados . Uma das causas desse fenômeno é um gosto inveterado pela novidade, já notório entre os Gregos da época dita clássica, e não menos entre os Celtas e os Germanos; portanto, a tendência à mudança e com isso à infidelidade, até mesmo à aventura luciferina; tendência neutralizada, é verdade, por mais de um milênio de Cristianismo. Mas há também – muito paradoxalmente – uma causa para essa incoerência cultural na própria religião – causa indireta, sem dúvida, mas que se combina ao longo do tempo com a causa que assinalamos –, a saber, o fato de que a doutrina e os meios do Cristianismo superam as possibilidades psicológicas da maioria; de onde uma cisão secular entre o domínio religioso, que tende a reter os homens numa espécie de gueto sagrado, e o “mundo” com seus convites sedutores – irresistíveis para ocidentais – à aventura filosófica, científica, artística e outra; aventura cada vez mais separada da religião, e no fim das contas voltando-se contra ela.

[Extraído de Sur les traces de la Religion Pérenne, de Frithjof Schuon (Le Courier du Livre, Paris, 1982, pp. 76-77)]

Uma ideia sobre “O gosto pela novidade

  1. Mateus

    Análise absolutamente genial de Schuon de um fenômeno bem complexo.
    Com uma sutileza filosófica imensa, ele concede a cada perspectiva o devido, e mostra que a verdade está bem distante dos extremismos teológicos. A verdade, de fato, está no meio termo, neste caso num meio termo tão profundo que é como o fio da navalha. Um pouco mais para este lado, ou para aquele, e a verdade escaparia.

    Resposta

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