Inteligência, vontade, sentimento

A inteligência humana é, virtual e vocacionalmente, a certeza do Absoluto. A ideia do Absoluto implica, por um lado, a do relativo e, por outro lado, a das relações entre um e outro, a saber, a prefiguração do relativo no Absoluto e a projeção do Absoluto no relativo; a primeira relação dando origem ao Deus pessoal, e a segunda, ao Anjo supremo (1) .

A vontade humana é, virtualmente e vocacionalmente, a tendência para o Bem absoluto; os bens secundários, quer sejam necessários ou simplesmente úteis, são determinados indiretamente pela escolha do Bem supremo. A vontade é instrumental, não inspiradora: nós conhecemos e amamos não o que queremos, mas queremos o que conhecemos e amamos; não é a vontade que determina nossa personalidade, é a inteligência e o sentimento (2).

O sentimento humano – a alma, se se quiser – é, virtualmente e vocacionalmente, o amor à Suma Beleza e a suas reverberações no mundo e em nós mesmos; neste último caso, as belezas são as virtudes, e também, num plano menos eminente, os dons artísticos. “Deus”, “eu” e “os outros”: eis as três dimensões às quais correspondem respectivamente a piedade, a humildade e a caridade, ou, digamos, as qualidades contemplativas, caracteriais e sociais.

Na piedade – e ela é essencialmente o senso do sagrado, do transcendente, do profundo – as virtudes complementares de humildade e de caridade se dirigem ao Sumo Bem e fazem dele seu objeto; o que quer dizer que a qualidade de piedade coincide, no fim das contas, com a santidade, a qual implica a priori a alegria por Deus e a paz nele. Neste contexto, a humildade se torna a consciência de nosso nada metafísico, a caridade se torna a consciência da imanência divina nos seres e nas coisas; ter o senso do sagrado é sentir que todas as qualidades ou valores não somente provêm do Infinito, mas também atraem a ele. A alma é quintessencialmente o amor da Suma Beleza, dissemos: de um ponto de vista menos fundamental e mais empírico, diremos que a substância da alma é a procura inconsciente de um Paraíso perdido, o qual na realidade está “dentro de vós”.

Se as virtudes fundamentais são belezas, toda beleza sensível, inversamente, manifesta virtudes: ela é “piedosa” – ou seja, ascendente” ou “essencializante” – porque ela manifesta arquétipos celestes; ela é “humilde” porque ela se submete às leis universais e por este fato exclui todo excesso; e ela é “caridosa” no sentido de que ela irradia e enriquece sem jamais pedir nada em troca.

Acrescentemos que, no mundo humano, só a espiritualidade engendra a beleza, sem a qual o homem normal e não pervertido não pode viver.

Notas

(1) Esse anjo é o Metatron da Kabbala, o Rûh do Alcorão e a Buddhi – ou Trimûrti – do Vedânta; é também o Espírito Santo da doutrina cristã enquanto ele ilumina os corações.

(2) As palavras “sentimentos” e “sentimental” evocam com muita frequência a ideia de uma oposição à razão e ao razoável, o que é abusivo, pois um sentimento pode ser justo e um raciocínio pode ser falso.

(Extraído de Le Jeu des Masques, de Frithjof Schuon; l’Age d’Homme, Lausanne, 1992.)

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