“Não se pode fazer uma distinção sistemática entre o sobrenatural e o espiritual, pois o primeiro intervém necessariamente no segundo, de diferentes formas. Também o intelecto tem um aspecto sobrenatural, mas isso está acima da perspectiva teológica comum, para a qual no homem só há a vontade e a razão.
“Não há que buscar nos padres nada que se situe fora de suas funções; portanto, há que se dirigir somente a sua função sacramental e, se for o caso, a sua autoridade teológica; mas a teologia se encontra também nos livros. [Lembrete do editor: carta escrita antes do Concílio Vaticano II. Hoje tal conselho só se aplicaria, no Catolicismo, a padres tradicionalistas, e mesmo, acreditamos, com muitas reservas; no Cristianismo Ortodoxo, por outro lado, a teologia e os ritos estão preservados, embora a mentalidade moderna esteja presente em toda parte.]
“No Cristianismo, são o batismo, a confirmação e a comunhão que constituem o que se pode chamar de iniciação; o caráter total desses sacramentos exclui a existência, ao seu lado, de ritos iniciáticos mais ou menos secretos que se sobreporiam a eles, como os há no Orfismo, no Sufismo etc. A particularidade do Cristianismo é precisamente esse caráter aberto dos meios iniciáticos; é, ao menos, uma particularidade no mundo semítico e ocidental. Neste ponto, há divergência entre a tese de Guénon e a minha. Não se pode conceber, com efeito, que possa haver, no Cristianismo, uma fonte de graças mais profunda e mais preciosa que o sangue do Cristo, ou que possa haver almas ou inteligências para as quais essa fonte não seria boa. A diferença exoterismo-esoterismo é, aqui, unicamente uma questão de perspectiva e de método. Por certo, há uma participação puramente exotérica nos sacramentos, de modo que não se poderia, sem abuso de linguagem, qualificar a massa dos cristãos de ‘iniciados’, mas os religiosos são iniciados, pelo fato de que seguem uma via espiritual; o mesmo vale para os padres santos, como o Cura d’Ars. Quanto à via intelectiva, a gnose, ela é representada sobretudo por Clemente de Alexandria, Mestre Eckhart e Angelus Silesius; mas é sempre uma gnose especificamente cristã, ou seja, que se mantém próxima à perspectiva do amor.
“Por consequência, os dois fatos (…) aos quais fazeis alusão em vossa carta não podem ser iniciações no sentido próprio e técnico do termo, pois o Céu não age nunca sem razão suficiente; por outro lado, tais fatos podem ser contatos ‘acidentais’ – e ao mesmo tempo ‘providenciais’ – com o mundo das Essências, quer o consideremos de uma maneira subjetiva ou de uma maneira objetiva e cósmica. Qual pode ser o valor prático de tais ‘encontros’ com os ‘estados superiores’? São chamados, vocações para uma vida contemplativa. Seria necessário, após ter experimentado tais ‘fissuras’ no endurecimento individual, fazer da vida uma prece contínua e secreta. Mas isso só é possível com a ajuda do Nome de Deus, ou seja, da invocação de Cristo, da ‘prece de Jesus’. Para trilhar uma tal via, é preciso ter, antes de tudo, os conhecimentos teóricos indispensáveis, e uma pureza de intenção que exclua todo individualismo, consciente e inconsciente. Em tal plano, há múltiplas ilusões. Mas, com Deus, tudo é possível.”
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Carta escrita em 31 de maio de 1955. Extraída do livro de cartas de Frithjof Schuon: Vers l’Essentiel – Lettres d’un Maître Spirituel, Ed. Les Sept-Flèches, Lausanne, 2013., pp. 15 e 16.