O mal não é o que faz sofrer

Segundo a convicção unânime da cristandade antiga e de todas as outras humanidades tradicionais, a causa do sofrimento no mundo é a desarmonia interna do homem – o pecado, se se quiser – e não uma simples falta de ciência e de organização. Nenhum progresso e nenhuma tirania chegará jamais ao fim do sofrimento; só a santidade de todos chegaria a esse ponto, se fosse possível de fato realizá-la e transformar assim o mundo numa comunidade de contemplativos e num novo paraíso terrestre. Isso não quer dizer, certamente, que o homem não deva, em conformidade com sua natureza e com o simples bom senso, buscar vencer os males que se apresentam em sua vida; para isto, ele não tem necessidade de nenhuma injunção divina nem humana.

Mas procurar estabelecer num país um certo bem-estar com vistas a Deus é uma coisa, e procurar realizar a felicidade perfeita na terra fora de Deus é outra; este segundo objetivo, de resto, está destinado de antemão ao fracasso, precisamente porque a eliminação durável de nossas misérias depende de nossa conformidade ao Equilíbrio divino, ou de nossa fixação no “Reino dos Céus que está dentro de vós”. Enquanto os homens não tiverem realizado a “interioridade” santificante, a abolição das provações terrestres não é somente impossível, ela não é nem mesmo desejável; pois o pecador – o homem “exteriorizado” – tem necessidade de sofrimentos para expiar suas faltas e para se desenraizar do pecado, ou para escapar à “exterioridade” da qual o pecado deriva [1].

Do ponto de vista espiritual, o único que leva em conta a verdadeira causa de nossas calamidades, o mal é, não por definição o que faz sofrer, mas o que, mesmo com um máximo de conforto ou de satisfação, ou de “justiça” se quiserem, frustra um máximo de almas de seus fins últimos.

Todo o problema se reduz em suma ao seguinte núcleo de questões: de que vale eliminar só os efeitos e não a causa do mal? De que vale eliminar esses efeitos se a causa permanece e continua a produzir indefinidamente efeitos semelhantes? De que vale eliminar os efeitos do mal em detrimento da eliminação da própria causa? De que vale eliminá-los substituindo a causa por outra, ainda bem mais perniciosa, a saber, o ódio ao sobrenatural e a paixão pelo terrestre?

Em uma palavra: se se combate as calamidades deste mundo fora da verdade total e do bem último, criar-se-ão calamidades incomparavelmente maiores, a começar, precisamente, pela negação dessa verdade e pela confiscação desse bem: aqueles que procuram liberar o homem de uma “frustração” secular são de fato aqueles que lhe impõem a mais radical e a mais irreparável das frustrações.

A civitas Dei e o progressismo mundano não poderiam, portanto, convergir, contrariamente ao que imaginam aqueles que se esforçam para adaptar a mensagem religiosa às ilusões e agitações profanas. “Quem não se junta a mim, dispersa”: esta palavra, como muitas outras, parece ter-se tornado letra morta, sem dúvida porque ela não é “de nosso tempo”. E no entanto: “A Igreja deve perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho”, nos ensina uma encíclica recente. Enquanto se espera, é matematicamente o inverso que é feito.

* * *

“Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça, e o resto vos será dado por acréscimo”: esta sentença é a própria chave do problema de nossa condição terrestre, como o é esta outra palavra que nos revela que “o reino dos Céus está dentro de vós”. Ou ainda, para lembrar um outro ensinamento do Evangelho: o mal não será vencido senão “pelo jejum e pela prece”, portanto pelo desapego com relação ao mundo que é o “exterior”, e pelo apego ao Céu, que é “interior”.

À questão “que é o pecado?”, pode-se responder desde logo que esse termo se refere a dois planos ou a duas dimensões: o primeiro desses planos exige “obedecer aos mandamentos”, e o segundo, de acordo com a palavra do Cristo ao jovem rico, “me seguir”, ou seja, estabelecer-se na “dimensão interior” e realizar assim a perfeição contemplativa; o exemplo de Maria tem primazia sobre o de Marta. O sofrimento no mundo é devido, não somente ao pecado no sentido elementar do termo, mas sobretudo ao pecado de “exterioridade”, o qual engendra aliás, fatalmente, todos os outros; um mundo perfeito seria, não somente o de homens que se abstivessem dos pecados de ação e de omissão, como o faz o jovem rico, mas antes de tudo o de homens vivendo “para o interior” e firmemente estabelecidos no conhecimento – e por conseqüência no amor – desse Invisível que transcende tudo e que engloba tudo.

Há aqui três graus a observar: o primeiro é a abstenção do pecado-ato, como o assassinato, o roubo, a mentira, a omissão do dever sagrado; o segundo é a abstenção do pecado-vício, como o orgulho, a paixão, a avareza; o terceiro é a abstenção do pecado-estado, ou seja, essa “exterioridade” que é ao mesmo tempo dispersão e endurecimento e que engendra todos os vícios e todas as transgressões.

A ausência desse pecado-estado não é senão o “amor a Deus” ou a “interioridade”, seja qual for seu modo espiritual; só essa interioridade seria capaz de regenerar o mundo, e é por isto que se diz que o mundo já teria desabado há muito tempo sem a presença dos santos, seja visível ou oculta.

O pecado-vício e com mais forte razão o pecado-estado constituem o pecado intrínseco; esses dois graus se encontram no orgulho, noção-símbolo que resume tudo o que aprisiona a alma na exterioridade e a mantém longe da Vida divina. Quanto ao primeiro grau – a transgressão – não há pecado intrínseco senão em função da intenção, portanto da oposição real a uma lei revelada; em si, pode acontecer que um ato proibido torne-se permitido em certas circunstâncias, pois é sempre permitido mentir a um bandido ou matar em legítima defesa; mas, fora de tais circunstâncias, o ato ilegal se liga sempre ao pecado intrínseco, ele se integra ao pecado-vício e por isso mesmo ao pecado-estado, que não é senão o “endurecimento do coração” ou o estado de “paganismo”, segundo a linguagem bíblica.

A convergência impossível é em suma a aliança entre o princípio do bem e o pecado organizado; ou seja, as forças do mundo, que são necessariamente forças pecadoras, organizam o pecado no objetivo de abolir os efeitos do pecado. Parece que a nova “pastoral” busca precisamente falar a “linguagem” do “mundo”, o qual tornou-se uma entidade honorável sem que se possa discernir a menor razão para essa promoção inesperada; ora, querer falar a linguagem do mundo, ou a de “nosso tempo” – mais uma definição que se abstém cuidadosamente de definir seja o que for – é fazer a verdade falar a linguagem do erro e a virtude a linguagem do vício. Todo o problema da “pastoral” em busca de uma “linguagem” se reduz na prática a esta façanha: como falar o latim para que se creia que é chinês, portanto sem que se perceba que é latim? Nada é mais equivocado que a expressão “falar a linguagem de alguém”, ou mesmo “a linguagem de seu tempo”; com a falsificação relativista que isto na realidade implica, pode-se bem ganhar adeptos, talvez, mas não se “converte” ninguém; ninguém é iluminado, nem chamado para a interioridade salvadora [2].

Compreender a religião, é aceitá-la sem lhe impor condições desenvoltas; impor-lhe condições é evidentemente não compreendê-la e torná-la subjetivamente ineficaz; a ausência de regateio faz parte da integridade da fé. Impor condições – seja no plano do “bem-estar” individual ou social, seja no plano da liturgia, que se preferiria tão chã e trivial quanto possível – é ignorar fundamentalmente o que é a religião, o que é Deus e o que é o homem; é reduzir de imediato a religião a um pano-de-fundo neutro e inoperante que ela não poderia ser de nenhuma maneira, e é retirar-lhe de antemão todos os seus direitos e toda a sua razão de ser.

O humilitarismo profano, com o qual a religião oficial procura se confundir cada vez mais, é incompatível com a verdade total e também, por conseqüência, com a verdadeira caridade, pela simples razão de que o bem-estar material do homem terrestre não é todo o bem-estar e não coincide, de fato, com o interesse global da pessoa humana imortal.

“Buscai em primeiro lugar o reino de Deus…” Lembrá-lo sempre de novo seria o primeiro dever dos homens de religião, e, se há uma verdade que convém particularmente ao “nosso tempo”, é esta mais que qualquer outra.


 

Notas

[1] É desta idéia que vem a obrigação, na maior parte dos povos arcaicos, de ser guerreiro, portanto de arriscar continuamente sua vida nos campos de batalha; a mesma perspectiva se encontra nas castas guerreiras de todos os grandes povos. Sem as virtudes heróicas, pensa-se, o homem decai e a sociedade inteira degenera; o único homem que escapa a esta coação é eventualmente o santo, o que equivale a dizer que se todos os homens fossem contemplativos a dura lei do heroísmo não seria necessária; só o herói e o santo atingem o Walhalla, os Elíseos, o céu dos Kamis.

[2] “Mas em toda cidade em que entrardes e onde não fordes acolhidos, saí para as praças públicas e dizei: mesmo a poeira de vossa cidade, que está pegada a nossos pés, nós a batemos para vo-la deixar. No entanto, sabei bem que o Reino de Deus está próximo. Eu vos digo que, nesse dia, Sodoma terá uma sorte menos rigorosa do que essa cidade.” (Lucas, X, 10-12). Esta passagem, assim como aquela que proíbe “jogar pérolas aos porcos”, mostra claramente que para tudo há um limite.

(Extraído de “A Convergência Impossível”, capítulo de A Transfiguração do Homem, de Frithjof Schuon; Sapientia, 2009.)

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