“Se o descrente se revolta com a ideia de que todos os seus atos serão pesados, de que será julgado e eventualmente condenado por um Deus que lhe escapa, de que deverá expiar suas faltas e mesmo simplesmente seu pecado de indiferença, é porque ele não tem o sentido do equilíbrio imanente, nem o da majestade da Existência, e do estado humano em particular. Existir não é pouca coisa; a prova é que ninguém poderia tirar do nada um só grão de poeira; e, da mesma forma, a consciência não é pouca coisa: não poderíamos dar nem uma parcela dela a um objeto inanimado. O hiato entre o nada e o menor objeto é absoluto, e é esta, no fundo, a absolutez de Deus. (1)
“O que há de atroz naqueles que afirmam que ‘Deus está morto’, ou mesmo ‘enterrado’ (2), é que eles se colocam, assim, necessariamente, no lugar daquilo que negam; quer queiram, quer não, eles preenchem psicologicamente o vazio deixado pela noção de Deus, o que lhes confere provisoriamente — e paradoxalmente — uma falsa superioridade e mesmo uma espécie de pseudo-absolutez, ou uma espécie de falso realismo com ares altivos e glaciais, e falsamente modestos se for preciso. De repente, sua existência — e a do mundo — fica terrivelmente solitária em face do vazio deixado pelo ‘Deus inexistente’ (3); é o mundo e são eles mesmos — eles, o cérebro do mundo! — que doravante suportam todo o peso do Ser universal em lugar de n’Ele poderem repousar como o exigem a natureza humana e, antes de tudo, a verdade. Sua pobre existência individual — não a Existência como tal enquanto eles dela participam e que lhes parece, aliás, ‘absurda’ na medida em que dela fazem uma ideia (4) — sua existência está condenada a uma espécie de divindade, ou antes a um simulacro de divindade, de onde essa aparência de superioridade de que falamos, essa facilidade marmórea que de bom grado se combina com uma caridade endurecida de amargura e no fundo voltada contra Deus.
“O isolamento artificial de que se trata explica de resto a mística do ‘nada’ e da ‘angústia’ e também a surpreendente receita da ação libertadora, e mesmo do ‘engajamento’: privado da ‘existenciação’ divina, ou acreditando sê-la, o homem deve substituí-la, sob pena de se desmoronar em seu próprio nada, por um sucedâneo de ‘existência’, qual seja, precisamente, a ação ‘engajada’ (5). Mas tudo isto no fundo não é mais que uma capitulação imaginativa e sentimental diante da máquina: uma vez que a máquina não tem valor a não ser pelo que ela produz, o homem só existe pelo que ele faz, não pelo que ele é; ora, o homem definido pela ação não é mais um homem, é um castor ou uma formiga.”
Notas
(1) Recordemos que Deus enquanto Sobre-Ser, ou Si suprapessoal, é absoluto num sentido intrínseco, enquanto o Ser ou a Pessoa divina é extrinsecamente absoluto, o que significa que ele o é em relação à sua manifestação ou às criaturas, mas não em si, nem para o Intelecto que ‘penetra as profundezas de Deus’.
(2) Há católicos que não hesitam em pensar o mesmo dos Padres gregos e dos escolásticos, sem dúvida para compensar certo ‘complexo de inferioridade’.
(3) Na realidade, Deus tampouco é ‘existente’, no sentido de que ele não poderia se reduzir à existência das coisas. Seria preciso dizer, para especificar que esta reserva não indica nada de privativo, que Deus é ‘não-existente’.
(4) Essa ideia se reduz à percepção do mundo e das coisas e é, portanto, completamente indireta.
(5) As pessoas esquecem que os sábios ou os filósofos que determinaram a vida intelectual dos séculos ou dos milênios — não falamos em Profetas — não estavam de nenhum modo ‘engajados’, ou, antes, que seu ‘engajamento’ estava em sua obra, o que é plenamente suficiente; pensar o contrário é querer reduzir a inteligência ou a contemplação à ação, o que está bem na linha existencialista.
Extraído de: Frithjof Schuon, O Homem no Universo, Perspectiva, São Paulo, 2001, pp. 56-58