Tendo fechado ele próprio o seu acesso ao Céu e tendo repetido diversas vezes — e em marcos mais restritos — a queda inicial, o homem terminou por perder a intuição de tudo o que o supera e, junto a isso, ele se tornou inferior à sua própria natureza, pois só se pode ser plenamente homem por Deus, e a terra só é bela por sua ligação com o Céu. Mesmo se o homem ainda é crente, ele cada vez mais esquece o que a religião no fundo é: ele se espanta com as calamidades deste mundo, sem imaginar que elas podem ser graças, pois elas rasgam — como a morte — o véu da ilusão terrestre e permitem, assim, “morrer antes de morrer”, portanto, vencer a morte.
Muitas pessoas pensam que o purgatório ou o inferno é para os que mataram, roubaram, mentiram, fornicaram e assim por diante, e que basta ter-se abstido dessas ações para merecer o Céu; na realidade, a alma vai ao fogo por não ter amado Deus, ou por não o ter amado suficientemente; isso pode ser compreendido quando se se lembra da Lei suprema da Bíblia: amar a Deus com todas as nossas faculdades e todo o nosso ser. A ausência desse amor (1) não é necessariamente o assassinato ou a mentira ou outra transgressão qualquer, mas é necessariamente a indiferença (2); e esta é o vício mais geralmente difundido, é a própria marca da queda.
É possível que os indiferentes (3) não sejam criminosos, mas é impossível que sejam santos; são eles que entram pela “porta larga” e caminham pelo “caminho espaçoso”, e é deles que diz o Apocalipse: “Assim, porque tu és morno e não és nem frio, nem quente, eu te vomitarei de minha boca.” (4) A indiferença para com a Verdade e para com Deus é vizinha do orgulho e não existe sem hipocrisia; sua aparente doçura é cheia de auto-suficiência e de arrogância; nesse estado de alma, a pessoa está contente com si mesma, mesmo se ela se acusa de defeitos menores e se mostra modesta, o que não a engaja em nada e reforça, ao contrário, sua ilusão de ser virtuosa.
É o critério da indiferença que permite surpreender o “homem médio” como que “em flagrante delito”, de pegar pela garganta o vício mais pérfido e mais insidioso e provar a cada um sua pobreza e sua insuficiência e risco; é essa indiferença que é, em suma, o “pecado original”, ou que o manifesta de forma mais geral.
Notas
(1) Trata-se, não exclusivamente de uma bhakti, de uma via afetiva e sacrificial, mas simplesmente do fato de preferir Deus ao mundo, seja qual for o modo dessa preferência; o “amor” das Escrituras engloba, por consequência, também as vias sapienciais.
(2) Foi com razão que Fénelon viu na indiferença a mais grave das doenças da alma.
(3) Os ghâfilûn do Alcorão.
(4) III, 16.
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Extraído de Regards sur les Mondes Anciens, de Frithjof Schuon, publicado por Éditions Traditionnelles, Paris, 1980, pp. 60-61. Há tradução brasileira com o título O Homem no Universo, publicado pela Editora Perspectiva.
Foto: colhida na Wikimedia Commons, sem descrição. Aparentemente, região basca. Fotógrafo: Indalecio Ojanguren.