Especulação confessional: intenções e impasses

Ensaio que integra o livro Nos Caminhos da Religião Perene, de Frithjof Schuon | Todos os direitos reservados para World Wisdom Inc.  Proibida a reprodução total ou parcial esta obra sem autorização dos detentores dos direitos. | Tradução de Alberto Queiroz / Revisão de Adriana Bonadio e Alberto Queiroz. | Publicado no website FSchuon.net em dezembro de 2015. | Esta tradução portuguesa desta obra não foi publicada em papel.


 Índice

Página de rosto | Prefácio | Premissas epistemológicas | Dimensões, modos e graus da Ordem divina | Especulação confessional: intenções e impasses  | Obstáculos da linguagem da fé | Notas de tipologia religiosa | Enigma e mensagem de um esoterismo | Escatologia universal | Síntese e conclusão


Especulação confessional: intenções e impasses

O fato de que as opiniões confessionais se refiram, quanto à substância, à mesma ordem transcendente que a Sabedoria perene visa nos permite abordá-las sem sair do marco de nosso assunto geral; e, se vemos interesse em abordar opiniões que estão sujeitas a caução, e que o estão mesmo em seu próprio terreno, é pela simples razão de que retificar um erro é tornar manifesta uma verdade. É esse, aliás, um meio dialético que se encontra em muitas exposições doutrinais do Ocidente e do Oriente, tanto sob a pena de um Santo Tomás quanto sob a de um Ashari; ou seja, sob este aspecto não inovamos em nada.

Uma primeira questão que queremos considerar aqui é a seguinte: muitos teólogos do Islã, e não dos menores, estimam que Deus quer o mal, porque, dizem eles, se Ele não o quisesse, o mal não aconteceria; pois, se Deus não quisesse o mal e o mal se produzisse apesar disso, Deus seria fraco ou impotente; ora, Deus é onipotente. O que esses pensadores ignoram manifestamente é a distinção, por um lado, entre o “mal como tal” e “tal ou qual mal” e, por outro lado, entre a subjetividade da Essência divina e a da Pessoa divina: pois a Pessoa divina é onipotente em relação ao mundo, mas não em relação a sua própria Essência; ela não pode impedir o que esta exige, a saber, a irradiação cosmogônica e as consequências que esta acarreta, ou seja, o afastamento, a diferenciação, a contrastação e, no fim das contas, o fenômeno do mal; o que equivale a dizer – repetimo-lo – que Deus é potente sobre tal ou qual mal, mas não sobre o mal como tal. Se nos objetam, com Asharî, que neste caso Deus seria “fraco” ou “impotente”, respondemos que isto não é de forma nenhuma uma objeção, e por duas razões: em primeiro, porque uma limitação metafísica – com as impossibilidades que ela engendra – não é nem “fraqueza”, nem “impotência” no sentido humano desses termos[1], e, em segundo, porque, precisamente, há, no caso em questão, impossibilidade metafísica da parte do Deus-Pessoa; dado – nunca é demais sublinhá-lo – que a Onipotência da Pessoa divina incide sobre a Manifestação universal e de forma nenhuma sobre as raízes in divinis dessa Manifestação, nem, por consequência, sobre as consequências principiais dessas raízes, o mal, por exemplo. Segundo um erro particularmente malsonante[2], e no fundo blasfematório, Deus não “quer” que nós pequemos, pois ele proíbe o pecado, mas, ao mesmo tempo, Ele “quer” que determinados homens pequem, pois, se Ele não o quisesse, eles não pecariam;[3] erro que incide sobre a subjetividade de Deus bem como sobre sua vontade. De resto, o mal surge da Onipossibilidade como “possibilidade do impossível” ou “possibilidade do nada”: a privação de ser está revestida, muito paradoxalmente, de um certo ser, e isto em função da ilimitação do Possível divino; mas “Deus” não poderia “querer” o mal enquanto tal.

Contrariamente ao Alcorão, que declara mais de uma vez que “Deus não rompe os compromissos” (lâ yukhlifu ‘l-mi’ad) ou “sua promessa” (wa’dahu), alguns exegetas insistem, ao contrário, na ideia de que Deus não deve nada ao homem, que em relação a este Ele é absolutamente livre, que Ele não lhe tem de prestar contas; preocupados, à força de “piedade”[4], em atribuir a Deus uma independência levada até o absurdo, eles arruínam tanto a noção de homem quanto a de Deus, e esquecem que, se Deus criou o homem, é porque ele desejava a existência de um ser a quem Ele pudesse dever alguma coisa; o que a expressão “criado à sua imagem” implica. Além disso, se Deus deseja algo, Ele o faz em conformidade com sua natureza, a qual coincide com sua vontade sem no entanto ser o produto dela, o que quer dizer que a vontade resulta da natureza, não inversamente; os zeladores do “Direito divino” não o podem ignorar, mas eles não tiram as consequências disso, desde que eles acreditam dever defender a liberdade de Deus, ou sua sublimidade, ou sua realeza. Especifiquemos que esses zeladores não são totalmente indesculpáveis de atribuir a Deus uma independência moral ilimitada, mas esse tipo de independência cabe à Essência, ao Sobre-Ser – que, precisamente, não legisla –, não ao Ser criador, legislador e retribuidor; portanto, não ao Deus pessoal. A confusão vem do fato de que a teologia – que não tem a noção de Mâyâ – não leva em conta nenhuma distinção eficaz entre os graus hipostáticos na Ordem divina, preocupada como ela está com a “unidade” a todo preço; sem falar do antropomorfismo, que atribui a Deus uma subjetividade na prática humana.

O dilema dos exoterismos em ambiente monoteísta é, acima de tudo, o seguinte: ou Deus é Um, e então Ele é injusto – quod absit – e é preciso manter essa aparente injustiça quer por uma declaração de incompetência, quer por uma referência ao mistério, quer, ainda, por uma absurdidade piedosa; ou Deus é justo, e então sua subjetividade é complexa, apesar de sua simplicidade e a despeito do dogma da Unidade – e é preciso velar essa complexidade com os mesmos estratagemas. Na realidade, a unidade intrínseca não exclui uma diversidade extrínseca, necessária, aliás, porque o mundo existe; e a justiça intrínseca não exclui uma aparência de injustiça ou ao menos de contradição, aparência inevitável, pois, precisamente, a Ordem divina é complexa; e ela o é em função da tendência existenciante e porque a existência não pode não ter antinomias. Por um lado, a complexidade da Ordem divina prefigura a diversidade e as antinomias da ordem cósmica; por outro lado, esta reflete à sua maneira a complexidade – condicionada por Mâyâ – da Ordem divina; esta última encontrando-se portanto tocada pelo princípio de Relatividade, de modo que só a Essência permanece absolutamente não-envolvida na engrenagem universal. Esta glória da Essência, o exoterismo não pode se impedir de atribuí-la à Mâyâ divina – ou seja, a tudo o que ele chama de “Deus” –, de onde suas dificuldades e seus embaraços; a piedade obriga a um sublimismo simplificador, e isto às custas da coerência.

De resto, se, por preocupação de coerência dogmática, se se apega a manter a unidade do Sujeito divino – o que evidentemente é legítimo do ponto de vista da Natureza divina em si –, está-se então obrigado a admitir uma diferença de modos na Vontade do Deus Um: a saber, um querer que é ativo e direto e outro que é passivo e indireto, se assim se pode dizer; é distinguir entre o que Deus “quer” em vista de um bem imediato ou ao menos previsível e o que Ele “permite” em função de uma necessidade principial, cujo fim é, aliás, necessariamente, um “maior bem” em razão mesmo da Natureza divina. Por certo, o mecanismo total dessa “permissão” escapa as mais das vezes à imaginação humana, a qual, neste caso, só apreende o detalhe, mas esse mecanismo total nem por isso deixa de ser apreensível pela inteligência, e isso é suficiente. A capacidade intelectual se mede, não somente pela qualidade, mas também pelos limites da necessidade pessoal de explicação, com a condição, está claro, de que esses limites sejam função dessa qualidade.

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“Só Deus é o Agente”, pois é ele que “cria” as ações dos homens. Muito bem. Mas, se nos enganamos ao acreditar que somos nós que agimos – como o querem certos sufis –, enganamo-nos também ao acreditar que somos nós que existimos; se a ação humana é, na realidade, a Ação divina, então o eu humano é, na realidade, o Eu divino. Se o homem “recebe” o ato que, na realidade, pertence a Deus, como ensina Asharî, ele “recebe” da mesma forma o ego que, na realidade, pertence a Deus; e gostar-se-ia muito de saber onde fica, aqui, o erro ou o pecado: na injustiça da ação, como o quer o senso comum, ou na ideia de que “sou eu quem age”, ou ainda na “aquisição” de um ato “criado” pelo Senhor único, como o quer este ou aquele sufi ou este ou aquele teólogo. Se há ilusão, ela está não em nossa convicção de que somos nós que agimos, mas em nossa própria existência[5], pela qual não somos, evidentemente, responsáveis moralmente. Se somos nós que existimos, somos também nós que agimos. Existentes, somos livres; nossos atos são os de Deus somente na medida em que, metafisicamente, nós não existimos, por só Ele ser.

Se Deus deu aos homens a convicção de serem os autores de suas ações, não foi de forma nenhuma – como determinado sufi o imaginou – para que eles não possam acusá-LO de ser o criador de seus pecados. É unicamente porque, dado que o homem existe, ele é ipso facto o autor de suas ações boas ou más, e isto com a mesma realidade ou irrealidade com a qual ele existe, como o dissemos acima. A consciência concreta de que Deus é metafisicamente o Agente subjacente só é realizável em função da qualidade moral, ou da retidão de certa forma ontológica, de nossas ações;[6] é a esta que é preciso dar muita atenção a priori, não à ideia de que é só Deus que age. Deus não nos enganou ao nos criar, e Ele também não nos engana em nossa convicção de agir livremente; por certo, Ele é a fonte de nossa capacidade de pensar e de agir, como Ele é a fonte de nossa existência, mas Ele não poderia ser o autor responsável de nossos atos morais[7], sem o que nós não seríamos nada; e Ele seria homem.

É evidente que a Atividade divina subjacente é a mesma nas ações boas e más, enquanto se trata da atividade como tal; esta reserva significa que as ações boas, além de sua participação na Atividade divina, são, em primeiro lugar, conformes ao Sumo Bem – que é a substância dessa Atividade – e, em segundo lugar, necessárias à manifestação do Agente divino na alma, precisamente em razão de sua conformidade ao Agathon; à Perfeição divina, que é a razão de ser da Atividade em si.

Portanto, é impróprio dizer, sem incluir a nuance indispensável, que Deus é o Agente de nossas ações. Ao contrário, se dizemos que “só Deus é o cognoscente”, pensando no Conhecimento metafísico – enquanto tal, não enquanto tradução mental –, falamos a verdade, pois esse Conhecimento não vem da subjetividade especificamente humana; ele é próprio do “Espírito Santo” e ele é o que nos liga, sem com isso nos divinizar, à Ordem divina; sem ele, ou sem sua virtualidade, o homem não seria o homem. O ser humano, por sua própria natureza, está condenado ao sobrenatural.

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“Assim, portanto, Ele faz misericórdia a quem Ele quer, e Ele endurece a quem Ele quer. Tu então me dirás: O que Ele ainda tem a censurar? Pois quem tem resistido, de fato, à sua Vontade? Mas, ó homem!, verdadeiramente, quem és para querer disputar com Deus? A obra por acaso dirá àquele que a modelou: Por que me fizeste assim? O oleiro não é senhor de sua argila para fabricar com a mesma massa um vaso honorável ou um vaso vil?” (Epístola aos Romanos, IX, 18-21)[8] – Esta passagem enuncia uma ideia que se encontra também no Islã: Deus tem todos os direitos, não porque é santo ou porque é o Sumo Bem, mas porque é onipotente. Argumento de conquistador e de monarca, sem dúvida,[9] que encerra de uma vez a discussão, mas que não explica nada do ponto de vista metafísico, que o Apóstolo, precisamente, não quis abordar. Indo ao fundo das coisas, poder-se-ia evidentemente responder que o homem tem direito à necessidade de explicação que Deus lhe deu, tanto mais quanto a questão de que se trata se impõe com uma lógica imperiosa; sem esquecer que uma simples questão ainda não é uma “disputa”. No fundo, a recusa imediata e sem análise de mérito que o Apóstolo opõe à nossa necessidade pessoal de explicação e ao nosso senso comum significa que ele quer velar a complexidade da Ordem divina a fim de salvaguardar a imagem antropomórfica do Deus monoteísta; mas é também, mais profundamente, uma recusa imediata à questão em si absurda: Por que determinada possibilidade é possível?[10]

Seja como for, segundo a doutrina paulina, o mal é necessário para a manifestação da “Glória” de Deus: os “vasos de Cólera”, a saber, as criaturas destinadas ao castigo, existem para permitir a aparição dessa Qualidade divina que é, precisamente, a Cólera ou a Justiça. Isso quer dizer que o pecado a punir, ou o desequilíbrio a retificar, é o aspecto complementar negativo, ou o suporte providencial, da Qualidade divina de que se trata; pois esta não poderia irradiar sem o concurso de causas ocasionais que são possibilidades negativas necessariamente inclusas na Infinitude do Princípio. Mas há também isto a considerar: o homem de bem não pensar em perguntar a Deus: “Por que tu me fizeste piedoso e honesto?”; assim como o pecador endurecido não perguntará: “Por que tu me fizeste pecador?”; pois o homem de bem não tem nenhuma razão para se queixar, e, quanto ao pecador, se ele encontrasse um motivo para sua questão – se ele sofresse com o fato de ser pecador –, ele não pecaria mais, pois nada obriga o homem a pecar. A questão: “Por que tu me fizeste assim?” só tem sentido para uma situação irremediável; ora, não é o estado do pecador que é irremediável, é a vontade deliberada, portanto orgulhosa, de pecar; e ninguém pode negar que o homem faz o que ele quer. Por certo, isto não retira do homem mau o direito de logicamente fazer a questão de que se trata; mas lhe proíbe de fazê-la moralmente, pois ele deseja ser o que ele é.

O problema da predestinação se resume metafisicamente pela doutrina da Possibilidade: toda coisa possível é evidentemente “idêntica a si mesma”, o que quer dizer que ela “quer” ser o que ela é, ontologicamente e inicialmente;[11] não é o Deus pessoal, criador e legislador que “quer” o mal, Ele transfere simplesmente para a Existência a Onipossibilidade diferenciada e diferenciante que reside na Essência divina, Essência da qual ele, o Deus pessoal, não é senão a primeira Hipóstase. Quanto ao homem, poderíamos dizer que a “danação” é de certa forma o lado passivo do indivíduo substancialmente perverso, ou seja, cuja própria substância é pecadora, o lado ativo sendo o pecado, precisamente; querendo o mal – querendo-o em sua própria substância – este indivíduo se “condena” a si mesmo, enquanto o pecado “por acidente”, portanto exterior à substância individual, só leva ao “purgatório”.[12] A notar que o “pecado mortal” não está somente na ação – um fato temporal não podendo acarretar, para o agente, uma consequência intemporal –, mas está antes de tudo no caráter, portanto na substância; isso quer dizer que um mesmo ato pode ter um alcance quer acidental, quer substancial, conforme resulte ele da casca ou do núcleo da pessoa. Quando o homem melhora seu caráter, Deo juvante, Deus não leva mais em conta os pecados passados cujas raízes desapareceram da alma: um pecado que não mais se cometeria é um pecado apagado, enquanto que o homem deve pagar por uma antiga transgressão que ele ainda poderia cometer. É evidente que, em tudo isto, não se trata do que parece pecado por sua forma, mas do que é pecado por um vício intrínseco, pois a ação vale pela intenção.

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Segundo Cristo, é preciso que “a Escritura se cumpra”, e o Alcorão fala, do mesmo modo, de um “Livro” no qual os menores fatos estão consignados de antemão, e também de uma “Tábua Preservada” na qual está inscrito o futuro, ou melhor, tudo o que é possível e tudo o que se realizará. Esse Livro divino não é senão a Onipossibilidade, em diferentes graus: em primeiro lugar, é o próprio Infinito, que é do domínio da Essência ou do Sobre-Ser, e do qual o Ser – o Deus pessoal – não pode não aceitar os dados; em segundo lugar, é a Infinitude enquanto ela pertence ao Ser, e é então a Onipossibilidade no grau não puramente principial e potencial, mas arquetípico e virtual; em terceiro, é a Ilimitação da Existência, portanto a Onipossibilidade manifestante e manifestada, ou o Logos que projeta as possibilidades e o mundo que as realiza.

Deus não pode não aceitar os dados que resultam da Essência, dissemos; não obstante isso, Ele não pode, Ele que é pessoal, querer todos os males de uma maneira positiva e expressa; mas Ele quer, e “deve querer” por sua própria natureza, que “a Escritura se cumpra”, e Ele pode, contudo, determinar-lhe as modalidades. Pois um outro mistério é a relatividade de certas possibilidades inscritas no “Livro”, ou seja, há coisas que devem ser de uma maneira absoluta e outras que podem não ser, ao menos quanto ao modo, e que, por consequência, podem mudar de forma ou de nível, sem o que seria inútil pedir favores a Deus. O costume islâmico de pedir a Deus, na noite de Ramadã, para mudar em bem o mal que está inscrito na “Tábua Preservada” não teria nenhum sentido. Deus é soberanamente livre, o que implica que há uma margem de liberdade mesmo na fixação dos destinos.

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Portanto, contrariamente ao que parecem entender os zeladores onipotencialistas – aqueles que querem explicar tudo pelo Poder divino –, a Onipotência de Deus não coincide com a suprema Onipossibilidade; a Onipotência – já relativa porque situada no grau do Ser e compreendida assim em Mâyâ – tem todos os poderes sobre as manifestações da Possibilidade suprema, mas esta – que, precisamente, é do domínio do Absoluto – escapa por isso mesmo à jurisdição ontológica da dita Potência.[13] Deus tem todo o poder sobre determinado mal, mas não sobre o mal como tal; Ele pode não criar determinado mundo, mas ele não pode não criar o mundo como tal; Ele não pode fazer que o Absoluto não seja absoluto, que o Infinito não seja infinito, que o mundo não seja o mundo; que Deus não seja Deus. Se “Eu concedo uma graça a quem Eu concedo uma graça, e Eu faço misericórdia a quem Eu faço misericórdia” (Êxodo, XXXIII, 19), é porque as coisas e as criaturas são o que elas são, por sua possibilidade. A atitude de Deus em relação a uma criatura é, em última análise, um aspecto dessa criatura.

Do ponto de vista da Verdade total, há uma interdependência entre a pessoa humana e o Deus pessoal que se explica por sua interligação em Mâyâ; os exoteristas estão logicamente errados – mas poderiam eles fazer de outro modo? – em atribuir à Divindade-Mâyâ as características do puro Atmâ, do puro Absoluto. De onde a imagem de um Deus ao mesmo tempo antropomórfico e incompreensível porque necessariamente contraditório; imagem que vai de par com a de um homem considerado incapaz de um conhecimento que não o sensorial, e mantido nos limites de uma piedosa ininteligência por argumentos fundamentalmente moralistas.

De resto, uma coisa é a legítima necessidade de explicação do homem disciplinado e intuitivo, e outra é a insaciável curiosidade do homem mundano e cético; é a este último que se deve opor, por meio da referência à grandeza de Deus e à pequenez do homem, uma recusa imediata e sem análise de mérito, tanto mais quanto o espírito exteriorizado e exteriorizante não estará jamais satisfeito e nem tem interesse em estar. Seja como for, a Bíblia e o Alcorão nos ensinam que os antigos próximo-orientais tinham incontestavelmente, ao lado de suas qualidades de homens inteiros, algo de terra-a-terra, de versátil e de revoltado – eles não foram, por certo, os únicos a ter essas fraquezas –, o que acrescenta uma justificação aos argumentos onipotencialistas da parta das Escrituras.

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Segundo a lógica dos zeladores obediencialistas, o homem é “escravo” (‘abd) da mesma maneira incondicional que Deus é “Senhor” (Rabb); de acordo com esta maneira de ver, o homem só tem sua inteligência para constatar, pelo estudo da Revelação, o que Deus declarou bom ou mau; não para compreender o que é bom ou mau em si e que, por consequência, Deus declarou como tal. Por excesso de piedade – por uma piedade que quer atribuir um caráter absoluto a uma coisa necessariamente relativa e condicional, a saber, a obediência –, não se percebe nem mesmo que é absurdo nos dizer que Deus é justo e compassivo ao mesmo tempo em que se proclama que é Deus que decide o que é a justiça e a compaixão.

Uma consequência da antropologia por assim dizer escravagista de alguns é o exagero, não do inferno, mas do risco de nele cair, risco atribuído mesmo aos homens mais piedosos; e isto a despeito de uma acentuação correlativa igualmente intensa do motivo de esperança, de perdão, de Clemência divina. Sem dúvida, a perspectiva da Misericórdia restabelece o equilíbrio na doutrina escatológica global, mas ela não abole, com isso, os excessos da perspectiva oposta, nem a incompatibilidade entre as duas teses; pois, se é verdade que Deus criou os pecadores para poder perdoá-los, como o indica Ghazâlî, e que desesperar da Misericórida é um pecado maior que todos os outros pecados acumulados, como o quer o khalifa Alî, não pode ser igualmente verdadeiro que homens santos como Abu Bakr e Omar tenham tido razão – supondo-se que a informação seja exata – de lamentar seu nascimento humano por causa do rigor do Juízo. Uma mesma doutrina não pode nos citar como exemplo um santo que se sentisse feliz de só passar mil anos no inferno e ao mesmo tempo nos garantir que Deus perdoa o crente arrependido mesmo se a massa de pecados se estende até o céu; e uma mesma moral não pode, em boa lógica, nos abater com ameaças escatológicas objetivamente desesperadoras ao mesmo tempo em que nos recomenda gozar de certos prazeres “lícitos” da vida, e não dos menores.

No que diz respeito à atribuição, ao ser humano, de um caráter exclusivamente “obediente” – num grau que equivale a lhe privar na prática de sua prerrogativa de homem –, diremos em primeiro lugar que o homem deve obedecer quando ele deve aceitar um destino, ou um dogma a priori incompreensível –, mas sempre garantido por outros dogmas, estes compreensíveis e fundamentais –, ou quando ele deve se submeter a uma lei ou a uma regra; mas ele não obedece quando ele distingue uma coisa de uma outra ou quando ele constata que dois mais dois são quatro. Em todo caso, o argumento decisivo nesta matéria é o seguinte: o fato de que o homem possa conceber o Sobre-Ser prova que ele não poderia ser sob todos os aspectos um “servo” (‘abd), e que há algo nele – seja somente em princípio, seja também de fato – que lhe permite  não reduzir sua atividade espiritual à obediência pura e simples; é o que exprime o título de “vigário” (khalîfah) dado ao homem pelo Alcorão, e é o que exprime também o fato de que, sempre segundo o Alcorão, Deus insuflou no homem “algo de seu espírito” (min Rûhihi), outorgando-lhe assim uma participação real no Espírito divino; o que, como o fenômeno geral da deiformidade humana, exclui uma natureza capaz unicamente de submissão, portanto de servidão.[14] Em outros termos, o espírito humano é essencialmente dotado de objetividade; o homem é capaz – por mais que isso desagrade aos relativistas – de sair de sua subjetividade, e isto está em relação com sua capacidade de conceber o Sobre-Ser, portanto de transcender o regime do Ser criador, revelador e legislador: de transcender intelectualmente e contemplativamente o “Eu” divino, a autodeterminação do Si supremo.

Esta última observação nos permite fazer menção ao seguinte aspecto do problema: o Si imanente compreende o Ser e o Sobre-Ser; ora, transcender o regime do Ser em virtude de uma consciência concreta e suficiente do Sobre-Ser – consciência raríssima e por definição unitiva em algum grau – é por isso mesmo transcender a Lei, produto do Ser legislador; não desprezá-la de facto, mas entrever-lhe os limites formais.[15] Convém, aqui, sublinhar, ainda que a coisa seja evidente, que o Si imanente é transcendente em relação ao eu, sem o que o ego seria divino, enquanto o Princípio transcendente – concebido objetivamente – é imanente a tudo o que existe, sem o que não haveria existência. E assim como a transcendência não implica que o Si deixe de ser imanente e virtualmente acessível, da mesma forma a imanência ontológica na criação não implica que o Princípio objetivo deixe de ser transcendente.

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O que os partidários de um determinismo absoluto não percebem é que, ao abolir as causas segundas em proveito de uma só Causa – ou ao não admitir senão esta, em detrimento daquelas –, eles comprometem a noção de Liberdade divina, pois um mundo sem liberdade nenhuma, portanto sem causalidade que lhe seja apropriada, não poderia advir de uma Divindade livre.  A potência causativa dos seres e das coisas manifesta a Potência una, não a abole; a liberdade do homem manifesta a de Deus, no sentido de que o homem é responsável por seus atos porque Deus é soberanamente livre. O Universo não é um mecanismo de relógio, ele é um mistério vivo; afirmar o contrário equivale a negar a Imanência, que em última análise é um efeito da Transcendência. E é no mínimo contraditório sustentar furiosamente a dualidade absoluta “Senhor e servo” ao mesmo tempo em que se declara que só o primeiro existe.

Mas há mais: um Deus que exige a obediência deve Ele próprio obedecer a alguma coisa, se assim podemos nos exprimir; esse Deus que obedece é o “não-supremo” (apara) dos Vedantinos, o qual já está compreendido em Mâyâ. Um Deus que não tem de obedecer a nada não exige obediência; e esta é a Divindade “suprema” (Paramâtmâ), a Essência “não-qualificada” (nirguna). Deus só poderia obedecer à sua própria Natureza; nem se coloca a questão de que Ele obedecesse a algo que se situasse fora d’Ele mesmo.

Ou ainda: Deus-Essência está além do bem e do mal, e Ele não é um interlocutor; Deus-Pessoa é um interlocutor, e Ele ama o bem e nos pede que o amemos. Um Deus que, sendo o “sumo Bem”, ame e ordene o bem não poderia estar “acima do bem e do mal”, assim como um Deus que tenha esta indiferença não pode ordenar nem proibir o que quer que seja.[16]

Em vez de dizer: “É impossível que Deus, que é o Sumo Bem e que proíbe o mal, queira, crie e faça o mal”, os onipotencialistas preferem dizer: “É impossível que existam coisas que Deus, que é o Onipotente, não queira e não crie, mesmo que seja um mal”. Por um lado, “personaliza-se” a Essência divina, que é impessoal, e, por outro lado, “desumaniza-se” o Deus pessoal.

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O grande enigma – do ponto de vista humano – é a questão de saber, não por que o mal como tal é possível, mas o que significa a possibilidade de tal ou qual mal; pode-se compreender o mal abstratamente, mas não concretamente – salvo em certas categorias de casos cuja lógica é transparente[17] –, ao passo que se pode compreender concretamente o bem sob todas as suas formas, isto é, apreende-se-lhe sem nenhuma dificuldade a possibilidade ou a necessidade. Ocorre que há no mal todo o mistério do absurdo, e este coincide com o ininteligível; só nos resta então referir-nos à noção de Onipossibilidade, mas então estamos de novo no abstrato; fenomenologicamente falando, não sob o aspecto da intelecção e da contemplação. A Onipossibilidade é uma coisa, seus conteúdos são outra.

Explicitemos também, ainda que isto resulte, em suma, do que acabamos de dizer, que o mal se torna incompreensível na medida em que ele é particular: a possibilidade do feio, por exemplo, é apreensível, mas que possa haver determinada feiura não é evidente, seja ela física ou moral. O que explica, não obstante, de certa maneira, “tal ou qual vício”, ou seja, a possibilidade – e, de fato, a necessidade – de um defeito particular, concreto e não somente principial, é a ilimitação do Possível, a qual deve realizar possibilidades anormais destinadas a desmentir impossibilidades; o que a Possibilidade não pode realizar – sob pena de absurdidade ontológica – nas coisas em si, ela realiza ao menos em aparência; neste plano, nada é “absolutamente impossível”, por mais anódina que seja a “compensação” da impossibilidade.

Uma chave para o enigma do mal em geral é esta fatalidade cósmica: onde há forma, há não somente diferença, mas também possibilidade de oposição efetiva, de acordo com o nível de coagulação formal; a queda de Adão, diz-se, trouxe consigo a de todas as criaturas terrestres, ela actualizou, por consequência, oposições latentes e introduziu no mundo a luta e o ódio; portanto o mal enquanto privação de caridade, por vezes combinado com um excesso de direito, como no caso de uma vingança justa que ultrapassa seus limites.

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Um exemplo típico de teologia obediencialista é a teoria asharita, que, em substância, nega que Deus ordena o que é bom e proíbe o que é mau; ela sustenta, ao contrário, – e já fizemos alusão a isto acima – que o bem é o que Deus ordena, e o mal o que Ele proíbe; ora, se fosse assim, Deus não teria nenhum motivo de ordenar nem proibir o que quer que seja, pois não se ordena por ordenar e não se proíbe por proibir, assim como não se permite por permitir. A ideia de Asharî é que Deus “cria” o bem e o mal, o que é no mínimo insuficiente, pois a causa do bem, e portanto a distinção entre o bem e o mal, está não no ato arbitrário de um Sujeito divino já tingido de Relatividade ou de Mâyâ – a saber, o Ser criador e legislador –, mas na própria Natureza de Deus ou em sua Essência. É neste sentido que o Alcorão declara que Deus “prescreveu-se a Misericórdia” ou que “lhe incumbe ajudar os crentes”; ele não diz que Deus “criou” a Misericórdia junto com seu contrário ou sua ausência, sem que se possa compreender o conteúdo dessas “criações” ou sem que se possa compreender outra coisa a não ser o fato da decisão divina. Estratégia teológica, poderíamos dizer: trata-se, com efeito, no espírito do teólogo, de sublinhar que “Deus” – o Sujeito divino que “quer” isto ou aquilo – determina tudo e não é determinado por nada; teria bastado, no entanto, dizer que Deus ordena ou abençoa o que é conforme à sua Natureza, a qual é o Sumo Bem e nos é apreensível, precisamente, por seus reflexos na criação. Dois mais dois são quatro não porque Deus o “quer”, mas porque isso resulta de sua Essência;[18] e é por isso que Ele o “quer” em relação aos homens, no sentido de que Ele lhes faz isso evidente outorgando-lhes a inteligência. Deus quer nos fazer participar de sua Natureza porque Ele é o Sumo Bem e por nenhuma outra razão.

Poder-se-ia sustentar, neste sentido, que, se Deus está “ligado” por sua própria Natureza ao fato de que determinada causa engendra determinado efeito, Ele é, ao contrário, livre para escolher o gênero de operação, por um lado, e seus termos, por outro; a escolha é do domínio de sua Infinitude, enquanto a coerência na aplicação dessa mesma escolha é do domínio de sua Absolutez. Poderíamos também observar – e repetimo-nos ao sublinhá-lo mais uma vez – que a liberdade reside na escolha, não nas consequências dela, que o bom uso da liberdade pressupõe, portanto, o conhecimento daquilo que nossa opção implica; isto é verdadeiro mesmo para Deus, não obstante o fato de que sua Onipotência – sua Liberdade, precisamente – implica a capacidade de operar exceções miraculosas, que, contudo, “confirmam a regra”. O homem, ao contrário, não pode em nenhuma circunstância escolher um cristal e escolher em seguida que este não seja nem duro nem transparente. Seja como for, não se trata de negar que as consequências ou as modalidades derivem da Vontade divina, trata-se simplesmente de sublinhar que elas derivem dela de uma forma diferente da das causas ou das substâncias: de certa maneira, cada gota de chuva está ligada ao Querer divino pelo fato de que ela é uma possibilidade, mas ela não está ligada a ele da mesma forma que a água em si, a qual determina todas as suas modalidades possíveis por sua própria natureza, e esta é evidentemente “desejada por Deus”.

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O que os zeladores de um “Direito divino” mal compreendido parecem não compreender é que, ao criar o homem, Deus se compromete; Ele, portanto, não é mais absolutamente livre como Ele é em si, e é um erro dizer que Ele é incondicionalmente livre em relação ao homem porque Ele é incondicionalmente livre em sua própria Natureza; ou que, tendo criado o homem segundo uma certa intenção e, portanto, segundo uma certa lógica, Ele não se comprometeu. Lemos num grande teólogo que o homem deve tudo a Deus, mas Deus não deve nada ao homem, o que equivale a dizer que não há nenhuma relação lógica entre o Criador e a criatura; que, ao criar a água, por exemplo, Ele teria criado algo que, a todo instante, poderia deixar de ser água; ou que Deus não age justamente porque Ele é justo, mas que um ato é justo porque ele é realizado por Deus.

A superacentuação da Transcendência leva ao mesmo impasse que a da Liberdade ou a da Onipotência: pois, se há Transcendência exclusiva, portanto absolutamente separativa, não há nenhum meio de saber que Deus é transcendente, ou mesmo simplesmente que Ele é; da mesma forma que, se Deus é livre ou onipotente sob todo aspecto possível – Ele só o é em relação aos modos de sua criação –, Ele é livre também para não ter as Qualidades que o caracterizam e mesmo para não ser Deus; quod absit, como o observamos acima. Mas, para o pensador do tipo asharita, o homem não tem escolha: dado que ele não pode conhecer o absolutamente Transcendente, ele deve se limitar a crer e a se submeter; ora, gostaríamos muito de saber por quê. Felizmente, o sentimento religioso, que é inato ao homem, não é função dos excessos piedosos de determinada teologia, mesmo se ele os aceita no plano das abstrações mentais, por simples piedade, precisamente.

Se existe um mundo em face de Deus e, mais ainda, esse mundo é diferenciado, portanto múltiplo, é preciso que haja em Deus mesmo um princípio de projeção e de diferenciação, e portanto de relatividade, que estabelece os graus hipostáticos na Ordem divina ou, pura e simplesmente, os graus de realidade – em suma, um “precedente metafísico” in divinis que torne possível o mundo e as coisas. Quando, por preocupação de unitarismo ontológico, nega-se esta Mâyâ universal, chega-se à absurdidade de uma subjetividade divina ao mesmo tempo implacavelmente transcendente e paradoxalmente antropomórfica; portanto à absurdidade de um Deus que, por unitarismo, é obrigado de se encarregar de tudo; que, na ausência das leis naturais, deve criar a queima do fogo cada vez que há fogo; de um Deus que “cria” os pecados dos homens e que, ao mesmo tempo, os pune, exceto quando Ele decide não o fazer. Tudo isto devemos admitir pela simples razão de que “Deus no-lo informou”, o que, para os fideístas, faz papel de explicação metafísica, a despeito do fato de que Deus criou nossa inteligência e, com ela, nossas necessidades de explicação legítimas; a razão de ser da criação do homem é precisamente o prodígio de uma inteligência que possa participar da Natureza de Deus e de seus mistérios, e que, deles participando – e na medida em que ela deles participa realmente –, é a primeira a saber que “o começo da sabedoria é o temor a Deus”.

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Na prática, não há somente uma lógica racional, há também uma lógica moral; e esta, em suas expressões, pode violar aquela. A ideia de um inferno eterno, por exemplo, é metafisicamente absurda; se ela foi eficaz durante mais de dois milênios, é porque ela foi sempre considerada segundo a lógica moral; essa eternidade torna-se então a sombra da Majestade divina desprezada. Quer se trate de danação ou de salvação, a absurdidade não está senão na ideia de uma alma imortal que começa com o nascimento e que passará sua eternidade a se lembrar de sua situação terrestre, e assim por diante; ela não está num simbolismo moralmente plausível e eficaz porque baseado, por um lado, no que há de quase absoluto na condição humana e, por outro lado, no que há de definitivo, do ponto de vista dessa condição, nos destinos de além-túmulo.

Poderíamos também nos exprimir assim: o que a religião quer obter, por assim dizer, “a todo custo”, portanto, eventualmente, em detrimento da lógica, é que o homem se submeta em todas as circunstâncias ao que podemos chamar de “vontade de Deus”: seja o mistério divino enquanto ele pode nos ser incompreensível, ou determinado destino que nos perturba, ou em geral os aspectos de ininteligibilidade do mundo. E isto dá à linguagem religiosa ou à formulação teológica um certo direito ao excessivo, mesmo ao absurdo, o homem sendo o que ele é [19]; se há um plano em que “O fim santifica os meios”, é este da vida espiritual em todos os graus. “Bem-aventurados os que creram sem ver.”

Lembremos aqui, mais uma vez, a diferença entre o “homem de fé” e o “homem de gnose”: entre o crente, que visa, em tudo, a eficácia moral e mística ao ponto de violar por vezes, sem necessidade, as leis do pensamento, e o gnóstico, que vive antes de tudo certezas principiais e que é feito de tal forma que essas certezas determinam seu comportamento e contribuem potentemente para sua transformação alquímica. Ora, sejam quais forem nossas predisposições vocacionais, devemos necessariamente realizar um certo equilíbrio entre as duas atitudes, pois não há piedade perfeita sem conhecimento, e não há conhecimento perfeito sem piedade.

Sem dúvida, há homens que só se salvam mancando, e certamente não é o caso de lho censurar, nem de lho impedir; mas isto não poderia significar que só eles se salvam e que todos devam mancar para se salvar. Esta observação vale independentemente do fato de que, sob certos aspectos, mancamos todos nós, nem que seja por causa dos acasos de nossa condição terrestre.

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Recorremos mais de uma vez à noção búdica de upâya, o “estratagema salvador”: ora, o upâya, pelo próprio fato de ser um meio “santificado pelo fim”, tem certo direito de sacrificar a verdade à oportunidade, ou seja, ele tem esse direito na medida em que determinada verdade permanece alheia à sua própria verdade fundamental e à estratégia espiritual correspondente.

O upâya, para ser eficaz, deve excluir; a via de “Deus em si” deve excluir a de “Deus feito homem” – ao mesmo tempo em que tem de manter um reflexo dela, cuja função será secundária – e inversamente; o Islã, sob pena de ser ineficaz, ou de ser algo que não ele mesmo, tem de excluir o dogma cristão; o Cristianismo, por sua vez, tem de excluir o axioma característico do Islã, como ele excluiu desde suas origens o axioma do Judaísmo, o qual coincide com o do Islã sob o aspecto em questão. As Epístolas de São Paulo mostram como o Apóstolo simplifica o Mosaismo na intenção de fortalecer o Cristianismo do duplo ponto de vista doutrinal e metódico; de uma maneira análoga, tudo o que, no conjunto de imagens do Islã, choca os cristãos deve se interpretar como um simbolismo destinado a desobstruir o terreno em vista da eficácia do upâya mohammediano. Para compreender uma religião, é inútil se deter em sua polêmica extrínseca; sua intenção fundamental está em sua afirmação intrínseca, que manifesta Deus e reenvia a Deus. O conjunto de imagens não é nada, a geometria subjacente é tudo.


Notas

[1] Pode-se, em certos casos, censurar ao fraco o não ser forte, mas não se poderia, sem absurdidade, censurar ao relativo o não ser absoluto; um modo ontológico não é uma falha moral.

[2] No original, malsonnante. Em francês, esta palavra é um termo teológico que tem o seguinte sentido, de acordo com o dicionário Littré: “Que soa mal, que não está de acordo com a doutrina ortodoxa, que pode ser tomado num sentido herético.” Optamos por manter o termo em português, embora só mantenha a primeira acepção, “que soa mal”. (N. do T.)

[3] A expressão cristã de que “Deus permite o mal”, e a de que Ele o faz “em vista de um maior bem” – ainda que seus caminhos possam não nos ser compreensíveis –, tais expressões são moralmente satisfatórias sem, contudo, serem intelectualmente suficientes. A notar que, no Islã, esclarece-se por vezes que Deus “induz ao erro” não de uma maneira ativa, mas “abandonando” o homem ou “desviando-se” dele.

[4] Usamos a palavra no sentido original, o mesmo do original francês, pieté: devoção, amor pelas coisas da religião, religiosidade. (N. do T.)

[5] “Não há pecado maior do que a existência”, segundo uma fórmula tão audaciosa quanto elíptica atribuída a Râbi’ah Adawiyah; e, segundo outra fórmula desse gênero, só Deus tem o direito de dizer “eu”, e o pecado de Iblîs foi, precisamente o de ter-se atribuído esse direito.

[6] Trata-se aqui de moralidade intrínseca, conforme à natureza das coisas, quer ela coincida ou não com determinada moral formal e institucional.

[7] Se o Alcorão especifica que “Allâh vos criou, a vós e ao que vós fazeis”, não pode ser na intenção de retirar do homem a responsabilidade moral, mas é para indicar a dependência ontológica total das criaturas; prova disso é que, no mesmo Alcorão, Deus prescreve e proíbe, promete e ameaça, o que só tem sentido em vista de uma responsabilidade que não seja a sua. Por um lado, o Alcorão declara que “Deus induz ao erro quem Ele quer” – não se deve esquecer que, segundo a Bíblia, Deus “endureceu o coração de Faraó” –, e, por outro lado, o Alcorão especifica que “Deus não queria lhes causar nenhum dano, mas eles causaram dano a si mesmos”, e outras expressões desse gênero.

[8] “Será que o oleiro é como a argila? Será que uma obra pode dizer ao seu criador: Eu não sou sua obra? E um vaso ao seu oleiro: Ele é inepto? (Isaías, 29, 16). Lógica voluntarista e fideísta que, em seu contexto, tem necessariamente sua razão de ser.

[9] Em nível de História sagrada, está claro, mas a psicologia de que se trata nem por isso deixa de manter sua particularidade.

[10] A mesma observação vale para esta expressão alcorânica: “Ele cria o que Ele quer” (yakhluqu mâ yashâ).

[11] É o que exprime o Alcorão nestes termos: “Mas se eles (os danados) fossem levados de volta (à Terra), eles voltariam ao que lhes era proibido…” (Surata “O Gado”, 28).

[12] No Cristianismo, a teologia é indecisa no que diz respeito à predestinação, não em si, mas quanto à intenção de Deus, a qual, segundo alguns, é independente dos méritos humanos e, segundo outros, é mais ou menos função destes, ou o é em certos casos; mas é a primeira dessas opiniões, sustentada, aliás, por Santo Agostinho e por Santo Tomás, que finalmente prevaleceu, ou que, ao menos, se sobrepõe às outras.  Os católicos censuram aos protestantes o acreditar terem certeza de sua salvação; além do fato de que a maior parte dos católicos, que ignoram a teologia, não tem outra atitude, essa certeza é, de fato, um elemento mais metódico do que dogmático – ao menos entre as pessoas piedosas – e ela, curiosamente, vem ao encontro da certeza análoga dos amidistas.

[13] Nós sem dúvida já o explicamos mais de uma vez, e talvez ainda voltemos a isso, mas não é possível, no encadeamento das informações doutrinais, lembrar-se de tudo o que já foi expressado, do duplo ponto de vista do conteúdo e da forma; tanto mais quanto é grande a tentação intelectual de expressar com precisão o que exige um máximo de clareza.

[14] Um outro exemplo do que se pode chamar, em bom direito e sem abuso de linguagem, de “dignidade humana” é o título de “amigo de Deus” (khalîl Allâh) conferido pelo Islã a Abraão. E, quando Jesus fala do “Pai nosso que estais nos Céus”, é precisamente para indicar que, se o homem é “servidor” sob certo aspecto, ele é “filho” ou “herdeiro” sob outro.

[15] A interiorização da Lei por Cristo, depois por São Paulo, está ligada a este mistério; interiorização da “letra que mata”, operada em virtude do “espírito que vivifica”. A notar que, na intenção de Cristo, essa transferência da forma para a essência não é uma “abolição”, mas uma “realização”. Que o Cristianismo, sendo uma religião, tenha-se tornado “Lei” por sua vez, é algo que diz respeito a uma dimensão bem diferente.

[16] Esta indiferença amoral – não imoral –se mostra na noção hindu de Lila, o “Jogo divino” na Mâyâ e por ela.

[17] Não esquecer que certos males, os desastres naturais, por exemplo, não são males em si, pois os elementos, que os provocam, são bens; o que não impede que as destruições por eles causadas não manifestem nada de positivo no plano humano, embora não constituam um mal intrínseco.

[18] É por isto que a palavra Haqq, que significa ao mesmo tempo “Verdade” e “Realidade”, é um dos nomes de Deus.

[19] O que nos faz pensar no koan dos zenistas: fórmulas ao mesmo tempo insensatas e explosivas, e destinadas a fazer romper a casca dos hábitos mentais que impede a visão do Real.