Síntese e conclusão

Texto final do livro Nos Caminhos da Religião Perene, de Frithjof Schuon | Todos os direitos reservados para World Wisdom Inc.  Proibida a reprodução total ou parcial esta obra sem autorização dos detentores dos direitos. | Tradução de Alberto Queiroz / Revisão de Adriana Bonadio e Alberto Queiroz. | Publicado no website FSchuon.net em dezembro de 2015. | Esta tradução portuguesa desta obra não foi publicada em papel.


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Síntese e conclusão

Duas enunciações dominam e resumem o pensamento vedantino: “O mundo é falso, Brahma é verdadeiro”; e “Tu és Isso”, a saber, Brahma ou Atmâ. Perspectiva de transcendência no primeiro caso e perspectiva de imanência no segundo.

As duas ideias explicam, cada uma em seu lugar ou à sua maneira, o mistério da Unidade, uma exprimindo a Unicidade e a outra, a Totalidade; falar da Realidade una é dizer que ela é ao mesmo tempo única e total. A Unidade é o em-si – ou a quididade – do Real absoluto; ora, quando consideramos este sob o aspecto da Transcendência e em relação às contingências, ele aparece como Unicidade, pois exclui tudo o que não é ele mesmo; e quando o consideramos sob o aspecto da Imanência e em relação a suas manifestações, ele aparece como Totalidade, pois ele inclui tudo o que o manifesta, portanto tudo o que existe. Por um lado, o Princípio, que é “objeto” em relação a nossa cognição, está “acima” de nós, ele é transcendente; por outro lado, o Si, que é “sujeito” em relação a nossa existência objetiva, pois que ele a “pensa” ou a “projeta”, está “dentro” de nós, ele é imanente. Isto quer dizer que os fenômenos são quer “ilusões” que velam a Realidade, quer, ao contrário – mas uma coisa não exclui a outra –, ”manifestações” que a desvelam prolongando-a por meio de uma linguagem alusiva e simbólica.

Por certo, a Transcendência afirma-se a priori no mundo objetivo, enquanto a Imanência determina antes de tudo o mundo subjetivo; mas isto não quer dizer que a Transcendência seja alheia ao mundo da subjetividade e que, inversamente, não haja Imanência no mundo da objetividade, que nos rodeia e ao qual pertencemos por nosso aspecto de exterioridade. A Imanência, com efeito, diz respeito aos fenômenos objetivos pelo fato de que estes “contêm” uma Presença divina existenciante, sem o que eles não poderiam subsistir um só momento; do mesmo modo e inversamente, a Transcendência diz respeito ao microcosmo subjetivo no sentido de que o Si divino, essência de toda subjetividade, permanece evidentemente transcendente em relação ao eu.

Não seria de forma nenhuma forçar as coisas dizer que o mistério da Transcendência refere-se de certa maneira ao Absoluto, e o mistério da Imanência, ao Infinito; pois os elementos de rigor, de descontinuidade ou de separatividade se ligam incontestavelmente ao primeiro desses dois aspectos divinos fundamentais, enquanto que os elementos de doçura, de continuidade ou de unidade se ligam ao segundo.

A perspectiva de Transcendência exige que, na avaliação habitual dos fenômenos, não percamos de vista nem os graus de realidade, nem a escala de valores; ou seja, que nosso espírito seja modelado pela consciência da primazia do Princípio, o que no fundo é a própria definição de inteligência. De uma maneira análoga, a perspectiva de Imanência exige que não percamos o contato com nossa subjetividade transpessoal, a qual é o puro Intelecto, que desemboca no Si divino; e ela exige também, ipso facto, que vejamos algo do Si nos fenômenos, da mesma forma que, inversamente, a perspectiva de Transcendência exige que tenhamos consciência da incomensurabilidade, não somente entre o Princípio e a manifestação, Deus e o mundo, mas também entre o Si imanente e o ego.

Se o Princípio transcendente tem primazia em relação à manifestação, extingue-a, exclui-a ou aniquila-a, o Si imanente, por sua vez, ao contrário, atrai, penetra e reintegra o eu; não tal ou qual eu, sem dúvida, mas o eu como tal, ou seja, o ego-acidente enquanto ele consegue se incorporar de uma maneira suficiente ao ego-substância, ou seja, ao “homem interior” que vive do Intelecto puro e está livre da tirania das ilusões.

Levando em conta certas afinidades por assim dizer “tipológicas”, a perspectiva da Transcendência – que coincide a priori com a visão “objetiva” do universo – implica o discernimento especulativo e, em função deste, uma certa contemplação intelectiva; ao contrário, é à perspectiva de Imanência – ou à realização “subjetiva” – que se refere, sob o aspecto do gênero, a concentração operativa e com ela a assimilação “cardíaca” ou mística. Além disso, diremos que a concentração está ligada a priori à vontade, e o discernimento, à inteligência; duas faculdades que resumem à sua maneira todo o homem.

Discernimento e contemplação; poderíamos dizer também, por analogia: certeza e serenidade. Certeza do pensamento e serenidade da mente, em primeiro lugar, mas também certeza e serenidade do coração; portanto derivando, não somente da visão intelectual do Transcendente, mas também da actualização mística do Imanente. Realizadas no coração, a certeza e a serenidade se tornam respectivamente a fé unitiva e o recolhimento contemplativo e extintivo [1]; a Vida e a Paz em Deus e por Ele; portanto a união a Deus.

A perspectiva objetiva, centrada na Transcendência e no Princípio, leva necessariamente à perspectiva subjetiva, centrada na Imanência e no Si, pois a unicidade do objeto conhecido exige a totalidade do sujeito cognoscente; não se pode conhecer O que unicamente é senão com tudo o que se é. E é isso que indica e prova que a espiritualidade, na medida de sua profundidade e de sua autenticidade, não poderia deixar nada fora de si; que ela engloba não somente a verdade, mas também a virtude e, por extensão, a arte; numa palavra, tudo o que é humano.

Vincit omnia veritas; dever-se-ia acrescentar: Vincit omnia sanctitas. Verdade e santidade: todos os valores estão nestes dois termos; tudo o que devemos amar e tudo o que devemos ser.


Nota

[1] A fé, não no sentido da simples crença religiosa nem do piedoso esforço de crer, mas no sentido de uma assimilação quase existencial – e iluminada ab intra – da certeza doutrinal. Poder-se-ia dizer também que o recolhimento está intimamente ligado ao senso do sagrado, como a serenidade, por sua vez, resulta do Transcendente.