Obstáculos da linguagem da fé

Ensaio que integra o livro Nos Caminhos da Religião Perene, de Frithjof Schuon | Todos os direitos reservados para World Wisdom Inc.  Proibida a reprodução total ou parcial esta obra sem autorização dos detentores dos direitos. | Tradução de Alberto Queiroz / Revisão de Adriana Bonadio e Alberto Queiroz. | Publicado no website FSchuon.net em dezembro de 2015. | Esta tradução portuguesa desta obra não foi publicada em papel.


 Índice

Página de rosto | Prefácio | Premissas epistemológicas | Dimensões, modos e graus da Ordem divina | Especulação confessional: intenções e impasses  | Obstáculos da linguagem da fé | Notas de tipologia religiosa | Enigma e mensagem de um esoterismo | Escatologia universal | Síntese e conclusão


Obstáculos da linguagem da fé

No Cristianismo como em outras religiões, encontram-se exemplos característicos da superacentuação do aspecto “servidor” quando se fala da natureza humana; dizemos “superacentuação” não para dizer que há limites para a virtude da humildade quando esta é determinada por uma situação objetivamente real – sem o que há excesso, não norma –, mas para especificar que uma certa sentimentalidade religiosa está sempre pronta a exagerar a indignidade do homem, ou seja, a reduzir o homem total e deiforme ao homem parcial e desviado; a reduzir eventualmente o “homem como tal” a “tal ou qual homem”. É o que se mostra de certa maneira no fato de suplicar a Deus, antes do rito da Consagração, “que receba favoravelmente esta oferenda de vossos servidores”, ou “que faça descer o Espírito Santo” sobre as espécies eucarísticas e as transforme “por um favor de tua bondade” no corpo e no sangue de Cristo, e outras fórmulas desse gênero, conforme as liturgias; o que quer dizer que se dá um caráter objetivo e sacramental a uma disposição subjetiva e moral.

Santo Tomás, que tem consciência do problema, levanta antes de tudo a questão de saber se a súplica de que se trata não é “uma prece supérflua, pois a Potência divina produz infalivelmente o sacramento”, e ele responde a seguir, por um lado, que “a eficácia das palavras sacramentais poderia ser contrariada pela intenção do celebrante” e, por outro lado, que “não há nenhuma inconveniência em pedir a Deus o que temos certeza que Ele realizará”; enfim, que o sacerdote reza, não para que a Consagração se realize, mas “para que ela nos seja frutífera” [1]. Essas explicações são plausíveis [2], mas elas não explicam o porquê da própria formulação, enquanto é aí que reside toda a questão do ponto de vista da linguagem religiosa, que é o que nos interessa aqui, e independentemente das variações litúrgicas.[3]

Outro exemplo de superacentuação religiosa é o seguinte: o Decreto de Graciano (século XII) estipula que, se, após a Missa, restam hóstias consagradas, os sacerdotes “devem ser diligentes em consumi-las com temor e tremor”; é verdade que o senso do sagrado exclui toda desenvoltura, mas essa não é uma razão para se exprimir de maneira a dar a impressão que se põe um moralismo encolerizado no lugar da esperança ao mesmo tempo vivificante e apaziguante que se impõe aqui, e da qual o fiel deve ser capaz, sob pena de estar desqualificado para o rito. Pois o que mais importa em semelhante caso não pode ser uma atitude de “tremor” [4], mas, ao contrário, um recolhimento contemplativo feito de serenidade e de santa alegria; recolhimento que, por definição, combina-se com o temor reverencial, por certo, mas não a ponto de reduzir toda a abordagem a um reflexo de separação ou de afastamento. A expressão de Graciano faz sentir, em suma, o que há de inconscientemente profanador na vulgarização do sacramento eucarístico, ditada por uma piedade mais emotiva que realista, e esquecida da injunção de não dar “aos cães o que é sagrado” [5]; esquecida do princípio de que a caridade bem compreendida é função da verdade, portanto da natureza das coisas.

Pensando, neste contexto, no cálice dourado da Missa, lembramo-nos de uma expressão que, também ela, manifesta como a sentimentalidade religiosa ocasionalmente estigmatiza e exclui: mais de uma vez lemos que o ouro é somente um “vil metal” enquanto a alma é bela, e outras expressões desse gênero. Na realidade, o fato de que o ouro seja uma matéria não o torna de forma nenhuma “vil”, sem o que a hóstia consagrada e a fortiori o corpo de Cristo e o da Virgem – elevados ao Céu, não destruídos – seriam também “vis”, quod absit; assim, é preciso estar afetado por uma mentalidade fundamentalmente moralizadora para confundir na prática uma inferioridade simplesmente existencial com uma baixeza moral. O próprio fato de que o cálice da Missa deva ser dourado desmente um tal abuso de terminologia, junto com a associação de ideias desagradável que ele logicamente engendra; abuso que não teríamos mencionado se não houvesse muitos outros exemplos desse gênero na literatura piedosa [6], ao menos quando o assunto tratado convida a tais confusões; o “complexo” fundamental sendo sempre o desprezo da “carne” em nome do “espírito”, ou da natureza em nome da sobrenatureza, sem ou com razão.

Como nos referimos muito, no capítulo precedente, à teologia islâmica, vale a pena, sem dúvida, assinalar obstáculos que tornam singularmente difícil o acesso à literatura piedosa do Islã e que mesmo, em muitos casos, a bloqueiam: trata-se, particularmente, de uma tendência marcada à expressão elíptica, e também, quase correlativamente, uma tendência não menos desconcertante ao hiperbolismo ou mesmo ao exagero puro e simples.[7] Isto não quer dizer – como vimos – que o Cristianismo esteja ao abrigo de tal gênero de dificuldades, mas sua linguagem é, em média, mais “ariana” que a da piedade muçulmana, portanto mais direta e mais aberta, menos simbolista e também menos floreada, de modo que ela corre menos riscos sob o aspecto de que se trata. Para o ocidental, o exagero tem algo de intelectualmente inadequado e de moralmente desonesto; para o próximo-oriental, ele compensa sua falsidade com sua utilidade: ele acentua a verdade estilizando-a, ou seja, traz à luz a intenção íntima da imagem que ele amplifica; ele faz quase um papel de “essencialização”, ou seja, mostra-se às vezes como “mais verdadeiro” que seu objeto, no sentido que ele lhe manifesta a qualidade secreta, encoberta pelo véu das contingências. O caráter quantitativo – não qualitativo – do exagero não tira dele nada de sua força chocante, aos olhos daqueles que o aceitam e o praticam; o que não deixa de ter relação, acreditamos, com o prestígio da ideia de “força”, portanto, também, com o argumento da Onipotência.

O simbolismo é a linguagem primordial, a da Sophia perennis; resta saber quais são seus deveres e quais seus direitos; as respostas serão sem dúvida diversas conforme os temperamentos e as épocas.

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Muitos paradoxos da literatura islâmica, a começar pelos próprios ahâdith, se explicam por um elipsismo preocupado com um “choque catalítico” à margem mesmo da lógica elementar. O senso comum surge então como algo “exterior” e “superficial”, profano, se se quer, portanto como uma falta de penetração, de intuição, de sutileza; o próprio paradoxo das elipses é visto como estimulando nosso instinto das intenções subjacentes.

Daremos como exemplo o hadîth seguinte, cuja autenticidade, aliás, não podemos garantir, mas pouco importa, pois ele é citado sem hesitação: “O alimento mais puro é o que ganhamos pelo trabalho de nossas mãos; o Profeta Davi trabalhava com suas próprias mãos para ganhar seu pão. O comerciante que conduz seus negócios honestamente e sem desejo de enganar os outros será colocado no outro mundo entre os Profetas, os santos e os mártires.” A este discurso, de uma absurdidade flagrante em sua literalidade, poder-se-ia objetar, de início, que Davi era rei e que não era o caso que fizesse um trabalho manual; mas pode-se, não obstante, imaginar que ele quisesse dar um bom exemplo a seu povo e que ele não considerasse a realeza como um trabalho a ser remunerado; este ponto não tem grande importância, mas, como a imagem de um rei que se crê obrigado a trabalhar para pagar seu alimento é em si mesma absurda, valia a pena indicar sua eventual plausibilidade. Mas passemos ao essencial: um mercador está a priori interessado em ganhar o mais possível, e a tentação de pequenas ou grandes fraudes reside em seu próprio ofício [8]; resistir metodicamente a esta tentação, renunciar, portanto, fundamentalmente, ao instinto do ganho, e isto com base na fé em Deus, portanto em um ideal espiritual, equivale a morrer para um modo de subjetividade; a objetividade, quer seja intelectual ou moral, é com efeito uma espécie de morte [9]. Ora, a objetividade, que no fundo é a essência da vocação humana, é um modo de santidade, e ela chega mesmo a coincidir com esta na medida em que seu conteúdo é elevado, ou na medida em que ela é integral; o desapego do mercador, por amor a Deus, é “uma forma de santidade”, e esta, sob o aspecto da substância, coincide com a “santidade como tal”; daí a referência, no citado hadîth, aos santos e mesmo aos Profetas [10]. A sentença é escandalosa à primeira vista, mas, por esta mesma razão, ela incita à meditação.

Que o elipsismo dialético e simbolista possa dar ocasião a muitos abusos, ou que ele possa levar à perda do senso crítico que ele, no entanto, deveria estimular é a própria evidência; e é uma outra questão. Seja como for: “Os deuses gostam da linguagem obscura”, diz um texto hindu. Eles gostam dessa linguagem, não porque eles afetem ininteligibilidade, mas porque eles odeiam a profanação; retirai das almas o vício da profanidade, e os deuses retirarão de sua linguagem o véu da obscuridade. Resta saber em que medida o homem tem direito a este princípio; em que medida ele pode falar em nome dos deuses, e como os deuses.

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Mas não há somente a expressão elíptica com aparência paradoxal, há também a expressão simbolista, analógica e alusiva: citaremos sob este aspecto as seguintes palavras, atribuídas ao khalifa Alî [11]: “Se mesmo uma só gota de vinho caísse num poço e ele fosse aterrado e se construísse nesse local um minarete, eu não subiria nele para fazer o chamado à oração. Se uma gota de vinho cai num rio, e o rio seca e a vegetação cresce em seu leito, eu não faria um animal pastar ali.” Tomadas em seu sentido literal, estas palavras são propriamente absurdas porque contrárias à natureza das coisas, sob o duplo aspecto do vinho e de sua interdição: na realidade, o vinho é nobre em si – como o provam as núpcias de Caná e o rito eucarístico –, e o Alcorão só o proíbe por causa do perigo de embriaguez, portanto de irresponsabilidade, portanto de rixas e de homicídio, e por nenhuma outra razão; contrariamente à natureza do vinho e à intenção da Lei, as palavras citadas significam em boa lógica, por um lado, que o vinho é intrinsecamente mau, e, por outro lado, que é por isso que a Lei o proíbe. Diz-se tradicionalmente que, no Paraíso, o vinho será permitido, e ninguém ignora que Cristo, Moisés, Abraão e Noé bebiam vinho, em suma, que todos os antigos semitas o faziam, como judeus e cristãos ainda o fazem, e honrosamente; sabe-se também o papel positivo que exerce no Sufismo o simbolismo do vinho [12]. A absurdidade da palavra citada é tão flagrante que é essa própria dissonância que permite supor – ou que obriga a admitir – que há aí uma intenção alusiva a analógica [13], que se trata por consequência não do vinho em si, mas do princípio negativo e maléfico da embriaguez psíquica; embriaguez natural e individualista, não sobrenatural e libertadora. É este aspecto da embriaguez que intervém em algum grau na música profana; ela amplifica o ego em vez de superá-lo [14]. Daí resulta um narcisismo refratário à disciplina espiritual, uma adoração de si que está no oposto da extinção beatífica, da qual a arte sacra quer dar um pressentimento; ao escutar uma música bela, o culpado se sentirá inocente. Mas o contemplativo, ao contrário, ao escutar a mesma música, esquecer-se-á de si mesmo pressentindo as essências; metaforicamente falando, ele encontrará a vida em a perdendo, ou ele a perderá em a encontrando. O que quer dizer que, para o contemplativo, a música evoca todo o mistério do retorno dos acidentes à Substância [15].

Mas voltemos ao hadîth de Alî: em suma, o ardor furioso do quarto khalifa contra o vinho se explica quando admite-se que o vinho é na prática o orgulho; o inchaço narcísico que a embriaguez produz não é senão, de fato, o “pecado original” considerado sob seu aspecto luciferino. Da mesma forma, compreende-se o encarniçamento do hadîth sobre os comerciantes – que citamos em primeiro lugar –, se se levam em conta as equações “avidez igual a concupiscência” e “concupiscência igual a queda”; é ainda o pecado original que é visado, mas desta vez sob seu aspecto de egoísmo ávido e avaro. A vitória sobre o “dinheiro” e o “vinho” torna-se a vitória sobre o “velho Adão”: a vitória pura e simples, a que personificam os santos e os Profetas; e a natureza destes não é senão a Fitrah, a “Natureza primordial”; a dos eleitos no Paraíso.


Notas

[1] Em que o Aquinata se baseia num texto de Santo Agostinho, o qual comunica, por sua vez, uma opinião de Paschase Radbert; cf. Summa Theologica, Terceira Parte, questão 83.

[2] Salvo, talvez, no que diz respeito à legitimidade de um pedido que é certo que será atendido, pois essa legitimidade, se ela é evidente em certos casos, não nos parece sê-lo no de um sacramento.

[3] No que diz respeito à intenção subjacente – não à forma explícita – das preces eucarísticas, já se sustentou, não somente que elas se explicam pela indignidade do homem em si, mas também que a Missa é um “ato comunitário” e que se trata de exprimir o sentimento da assistência. Sem querer nos estender nesta questão, que está fora de nosso tema, observaremos que esta concepção do papel mais ou menos sacerdotal da assistência laica é dos mais ambíguos e pode dar ocasião a muitos abusos, a despeito das delimitações teológicas, que diferem, aliás, de uma confissão a outra.

[4] Atitude que um São Juliano Eymard, apóstolo da adoração do Santo Sacramento, não teria aprovado. Acrescentemos, todavia, que preferimos em muito o tremor de Graciano à impertinência dos modernistas.

[5] Há, de resto, algo de singularmente desproporcional ou de “malsonante” no fato de consumir hóstias consagradas pela simples razão que as há muitas e que não se quer conservá-las; há aí uma dissonância que indica, à sua maneira, a disparidade entre o sacramento e a aplicação que dele é feita; ou entre a natureza do sacramento e uma certa interpretação que carece de realismo e de maleabilidade; é subestimar a Deus por excesso de zelo.

[6] Nesta ordem de ideias, ignora-se habitualmente a dignidade e a inocência do animal, o qual deve pagar os preços terminológicos da decadência humana.

[7] Tratamos desta questão espinhosa em nosso livro Forma e Substância nas Religiões, nos capítulos “Algumas dificuldades dos textos sagrados” e “Paradoxos da expressão espiritual”, e mais amplamente ainda nos três primeiros capítulos de nosso livro Sufismo, Véu e Quintessência.

[8] A avidez é inclusive considerada, no Alcorão, como o vício que caracteriza o homem caído: “A rivalidade (para ganhar mais) vos distrai (de Deus), até que visiteis os túmulos…” (Surata “A Rivalidade”, 1 e 2).

[9] Muitas vezes, no Oriente, pudemos testemunhar o desapego e a serenidade que derivam dessa atitude; e isto em comerciantes as mais das vezes pobres, a maior parte deles membros de uma Confraria.

[10] As palavras “entre os Profetas” indicam não a localização celeste, mas a afinidade sob o aspecto considerado, o do desapego “pela Face de Deus” (liwajhi ‘Llâh).

[11] Com ou sem razão, mas não é essa a questão, pois não se demonstra nenhum escrúpulo em repassá-las tais e quais. O que importa aqui é a quantidade e o sucesso das propostas desse gênero, não sua autenticidade.

[12] Dá testemunho disso a Khamriyah, o célebre poema místico de Omar ibn Al-Fâridh. Omar Khayyâm se surpreende, em seus quartetos, com o fato de o vinho ser proibido neste mundo, enquanto que no Paraíso ele será autorizado; gracejo que só tem sentido em esoterismo.

[13] Credo quia absurdum est, como dizia Tertuliano.

[14] Salvo no caso em que ela constitui uma “consolação sensível” apaziguadora ou estimulante, e sem pretensão; mas a perspectiva islâmica exclui mesmo esta possibilidade, ao menos em princípio.

[15] O Cristianismo é uma religião musical, se se pode dizer, como o indica o papel importante dos cânticos e dos órgãos nas igrejas. O Islã quer representar o ponto de vista oposto, o da secura e da sobriedade em vista da “única coisa necessária”, mas ele compensa essa pobreza pela musicalidade da salmodia do Alcorão e também, em sua dimensão súfica, pelas poesias, pelos cânticos e pelas danças, que são uma série de manifestações esotéricas do “vinho” proibido pelo exoterismo; sem falar do papel preponderante que exerce no Islã a sexualidade.