Notas de tipologia religiosa

Ensaio que integra o livro Nos Caminhos da Religião Perene, de Frithjof Schuon | Todos os direitos reservados para World Wisdom Inc.  Proibida a reprodução total ou parcial esta obra sem autorização dos detentores dos direitos. | Tradução do original francês. | Publicado no website FSchuon.net em dezembro de 2015. | Esta tradução portuguesa não foi publicada em papel.


 Índice

Página de rosto  | Prefácio | Premissas epistemológicas | Dimensões, modos e graus da Ordem divina | Especulação confessional: intenções e impasses  | Obstáculos da linguagem da fé | Notas de tipologia religiosa | Enigma e mensagem de um esoterismo | Escatologia universal | Síntese e conclusão


Notas de tipologia religiosa

O homem pode se aproximar do Absoluto por duas vias [1], uma baseada em “Deus em si” e a outra em “Deus feito homem”; é isso que faz a distinção entre, por um lado, o Abraamismo, o Mosaísmo, o Islã, o Platonismo e o Vedantismo, e, por outro lado, o Cristianismo, o Ramaísmo, o Krishnaísmo, o Amidismo e, de certa maneira, mesmo o Budismo puro e simples.

A segunda dessas vias – a do Logos – é comparável a uma barca que nos leva à outra margem: a terra longínqua se faz terra próxima, sob a forma da barca; Deus se faz homem porque nós somos homens; Ele nos estende a mão ao assumir nossa própria forma. O que implica, em primeiro lugar, que o homem não possa se salvar de outra forma que não mediante esta mão estendida por Deus e, em segundo lugar, que a imagem do “Deus em si” perde sua nitidez na mitologia e na economia salvadora do “Deus feito homem”.

A primeira dessas duas vias se baseia, ao contrário, na ideia de que o homem, por sua própria natureza – caída ou não –, tem acesso a Deus, e que é a fé em “Deus em si” que salva; mas essa fé deve ser integral, ela deve englobar tudo o que nós somos, a saber, o pensamento, a vontade, a atividade e o sentimento; é o que querem realizar as Leis Sagradas, tanto para a coletividade quanto para o indivíduo [2]. O homem se salva em se conformando perfeitamente à sua natureza teomorfa; a Lei sagrada é o que nós somos, essencialmente e, portanto, primordialmente.

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Está na natureza das coisas que nenhuma das duas vias fundamentais possa excluir totalmente a verdade da outra via; a via do Logos deve encontrar seu lugar secundário – nem que seja a título simbólico – no marco da via do “Deus em si”, e inversamente. O Xiismo, com sua quase-divinização de Alî e de Fâtima e sua imamolatria subsequente, projeta, por assim dizer, a perspectiva cristã no Islã; o Amidismo, com sua confiança salvadora na Misericórdia do Buda-Deus Amida, parece introduzir esta mesma perspectiva fundamental no Budismo [3]. O Hinduísmo – como seria de esperar – contém as duas perspectivas, uma ao lado da outra, ele é tanto vedantino quanto  krishnaíta .

Mas os exemplos extremos do Xiismo e do Amidismo não bastam, pois se trata de reencontrar a perspectiva estrangeira não somente nesta ou naquela cristalização particularista, mas também, e mesmo antes de tudo, na religião geral: assim, o culto do Logos se encontra no Islã geral sob a forma atenuada e, por assim dizer, neutralizada do culto místico de Mohammed, cuja expressão canônica é a “Bênção do Profeta”; o culto do Logos se encontra também no Budismo geral, sob a forma da quase-adoração do Buda, algo de que a imagem clássica e universal do Buda é a marca mais notória.

Evidentemente, a reverberação inversa também existe, e ela se manifesta, muito paradoxalmente, no fato de que as religiões do Logos “feito homem” consideram, em certa medida, este homem como se ele fosse o “Deus em si”: também elas querem realizar o humano integral e primordial mediante o recurso a uma Lei, mas sempre partindo da ideia de um “Verbo feito carne” e da incapacidade fundamental do homem marcado pela queda; portanto, sem sair de sua ótica geral e determinante.

A confrontação entre os dois tipos de religião, centradas uma no Deus-em-si e outra no Deus-feito-homem, evoca o princípio de uma dupla relação, não só do homem a Deus, mas também da esposa ao esposo, do povo ao monarca, e outras complementaridades desse gênero. Se nossa confrontação das religiões nos mostrou que há um acesso a Deus que é direto e outro que é indireto, poderemos dizer o mesmo das situações puramente humanas: a esposa não pode ser subordinada ao esposo senão com a condição de ser, num outro plano, sua amiga, a saber, no plano de sua humanidade comum; da mesma forma, é uma regra elementar da monarquia que o monarca, se, por um lado, ele domina seus súditos, deve, por outro lado, sempre salvaguardar diante deles uma relação de homem a homem, como nos mostram os exemplos dos grandes reis do passado.

Para o Ocidental, o acesso à personalidade do Profeta está como que bloqueado pelos seguintes fatores: a linguagem à primeira vista estranhamente “homem médio”, ou mesmo “terra-a-terra” e um pouco “descontínua” do Profeta; uma certa complicação e quase-acidentalidade de sua vida privada; e, sobretudo, a pretensão canônica de colocá-lo acima de Cristo. Além disso, o acesso à personalidade de Mohammed só é possível – excetuando-se o caso de uma conversão pura e simples, cujo resultado será o esquecimento ou a incompreensão da personalidade de Jesus – esse acesso, dizemos, só é possível por um desvio metafísico ou esotérico que apreende o fenômeno a partir do interior e vai da síntese à análise, da essência à forma ou da substância ao acidente. Tratamos deste tema em outras ocasiões e nos limitaremos aqui à seguinte constatação, a qual parecerá a priori uma petição de princípio, mas pouco importa, pois que as consequências espirituais, religiosas, culturais e históricas do fenômeno mohammediano lhe provam a legitimidade, a eficácia e a grandeza: contrariamente ao que ocorre com Cristo, que não faz senão passar como que a contragosto pelo estado humano e que nele se encontra quase que como um estrangeiro, o Profeta, deliberadamente separado da Ordem divina – pois a razão de ser do Islã quer que o Enviado seja “o homem, todo o homem, nada mais que o homem” –, o Profeta, portanto, situa-se integralmente na condição humana e assim aceita e realiza à perfeição tudo o que é positivamente humano e natural; algo que, para os Cristãos, confunde as pistas que levam à sua santidade. Ele tem, essencialmente, o senso da sociedade, enquanto Cristo só considera o homem em si; neste sentido, São Paulo, no entanto consciente da utilidade social do casamento, parece querer fazer deste uma espécie de punição, como que para se vingar no homem que não escolheu o celibato em vista do Espírito Santo, e isto a despeito desse viés[4] que é a sacramentalização do casamento, a qual recorre ao Espírito Santo e solicita sua participação. Seja como for, as formulações dogmáticas e as estipulações éticas têm necessariamente algo de abrupto, se assim podemos dizer; não se edifica uma religião com nuances.

Por mais estranho que possa parecer tal asserção – que, no caso de Cristo, não teria nenhum sentido –, Mohammed é o Profeta do “razoável”; de um razoável não medíocre, está claro, mas feito de realismo psicológico e social, e suscetível, por consequência, de veicular a via ascendente. Numa ou noutra circunstância, mas não raramente, o Profeta sabia ser tão “piedosamente irrazoável” quanto os ascetas cristãos, e é a estes exemplos “à margem” que se refere o ascetismo esotérico de que falamos acima; “à margem” porque alheios – se não contrários – ao princípio de medida e de equilíbrio da religião comum.

O Profeta, dizem os sufis, realiza a síntese de todas as possibilidades espirituais, enquanto que cada um dos outros “Enviados” só representa uma única dessas possibilidades, ou ao menos só acentua uma delas. Enquanto que a mensagem de “interioridade” ou de “essencialidade” de Jesus – oposta ao culto das “observâncias exteriores” – é unívoca e impactante, é precisamente o caráter de síntese ou de equilíbrio da mensagem mohammediana que torna mais ou menos “impreciso” o retrato espiritual do Profeta, ao menos visto desde fora e na ausência das chaves necessárias; mas, para os muçulmanos, esse mesmo retrato é perfeitamente inteligível, pois eles o concebem a priori como o leque aberto de todas as grandezas e de todas as belezas, e isto não com base numa abstração, está claro, mas seguindo o itinerário complexo dos episódios grandes e pequenos que vão marcando o percurso da vida do herói. Poder-se-ia dizer que, em certo sentido, a perspectiva islâmica, no que diz respeito ao Mensageiro e à vida espiritual, vai da análise à síntese, enquanto que a perspectiva cristã, ao contrário, procede da síntese à análise, sob os dois mesmos aspectos.

Uma verdade simbólica nem sempre é literal, mas uma verdade literal é necessariamente sempre simbólica. As diversas tradições islâmicas a respeito de Cristo, da Virgem e dos cristãos certamente não devem ser tomadas literalmente – o que não abala em nada sua intenção ou seu simbolismo, precisamente –, mas, quando o Islã ensina que existe, e que sempre existiu, a possibilidade da salvação fora da pessoa de Cristo, e que essa é uma manifestação salvadora entre outras – o que não significa que ela seja como as outras –, a verdade literal está de seu lado, ao menos sob este aspecto particular [5]. Jesus é exclusivamente “a Porta” e “a Via”, por certo, mas a Porta, ou a Via, não é exclusivamente Jesus; o Logos é Deus, mas Deus não é o Logos. Toda a questão é saber em qual grau aceitamos este axioma e quais consequências tiramos dele.

De um ponto de vista bem diferente, não há religião que não tenha elementos na prática comparáveis ao que se chama, em linguagem zenista, um koan: a saber, uma fórmula logicamente irritante, destinada a fazer romper a casca da mente, não num rumo descendente, está claro, mas ascendente; e neste sentido toda religião, por tal ou qual aspecto ou por tal ou qual detalhe, é uma “loucura divina”, o que é compensado, aliás, a priori, pela evidência ofuscante e quase existencial de sua mensagem global. Por mais que o cético ou o pedante entre em choque com inevitáveis contrassensos, haverá sempre na religião um elemento fundamental que não lhe deixa desculpa; mas que, ao contrário, fornece uma desculpa largamente suficiente para as dissonâncias do simbolismo religioso.

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Após todas essas considerações sobre uma questão de tipologia religiosa, e, no fim das contas, sobre os enigmas da linguagem dogmática em geral, acreditamos poder mudar de assunto ainda dentro deste capítulo e abordar um problema conexo, o da relação – ou de certas relações – entre o Ocidente cristão e o Oriente muçulmano; dizemos “abordar” porque não é o caso de tratar do problema a fundo. Em primeiro lugar, devemos assinalar o seguinte fenômeno: acontece com muita frequência  que ocidentais mais ou menos próximos do Islã acusem os outros ocidentais de negligenciá-lo e de só ter em relação a ele preconceitos imperdoáveis, em vez de estudá-lo com amor; o que é totalmente injusto e mesmo propriamente absurdo, pois, mesmo fazendo abstração de todos os preconceitos possíveis – os ocidentais por certo não são os únicos a tê-los –, é um fato que o Islã rejeita os dogmas do Cristianismo, põe o Alcorão no lugar do Evangelho, o Profeta no lugar de Cristo, e pensa que a religião cristã deveria ceder seu lugar à religião muçulmana; ora, essas opiniões bastam e muito para tornar o Islã inaceitável e mesmo odioso aos olhos dos cristãos. O que importa, do ponto de vista da verdade total – já o dissemos e agora o repetimos – é saber que as teses anticristãs do Islã só têm, fundamentalmente, uma significação simbólica, extrínseca e “estratégica”, e isto em função de uma intenção espiritual positiva que evidentemente não tem relação com fenômenos históricos. A mesma observação se aplica, mutatis mutandis, às teses cristãs que procuram invalidar todas as outras religiões, e assim por diante. Deus quis – não podemos duvidar disso – que mundos religiosos diferentes e divergentes coexistam num mesmo planeta; no interior de um desses mundos, ele não pede contas sobre os outros; e é, aliás, com a mesma “lógica existencial” que cada indivíduo crê ser “eu”. Se Deus quer que haja diversas religiões, Ele não pode querer que uma religião seja a outra, e, portanto, cada uma deve ter barreiras sólidas.

Nas condições normais, o muçulmano só tem uma única religião, que o envolve e o penetra a tal ponto que lhe é impossível sair dela, a não ser por apostasia; o leitor se surpreenderá com esse truísmo, mas verá imediatamente sua função se acrescentamos que o cristão médio, ao contrário, parece ter, na prática, três religiões ao mesmo tempo, em primeiro lugar o Cristianismo, depois a “civilização” e, por fim, a “pátria” ou a “nação” ou a “sociedade”, ou outra ideologia política qualquer, conforme as flutuações da moda ou conforme o meio; a religião propriamente dita é posta num canto, os reflexos humanos são compartimentados [6]. Uma das causas desse fenômeno é um gosto inveterado pela novidade, já notório entre os gregos da época dita clássica, e não menos entre os celtas e os germanos; portanto, a tendência à mudança e com isso à infidelidade, até mesmo à aventura luciferina; tendência neutralizada, é verdade, por mais de um milênio de Cristianismo. Mas há também – muito paradoxalmente – uma causa para essa incoerência cultural na própria religião – causa indireta, sem dúvida, mas que se combina ao longo do tempo com a causa que assinalamos –, a saber, o fato de que a doutrina e os meios do Cristianismo superam as possibilidades psicológicas da maioria; de onde uma cisão secular entre o domínio religioso, que tende a reter os homens numa espécie de gueto sagrado, e o “mundo” com seus sedutores convites – irresistíveis para ocidentais – à aventura filosófica, científica, artística e outras; aventura cada vez mais separada da religião, e no fim das contas voltando-se contra ela.

O Islã, dir-se-á, é estéril, ele esmaga toda iniciativa criadora; talvez, mas ele o faz “deliberadamente” e com conhecimento de causa; pois foi assim que ele conseguiu manter um mundo bíblico por um milênio e meio diante de um Ocidente cada vez mais prometeico e perigosamente “civilizado”. Sem dúvida, o Islã não pôde escapar à decadência que invadiu o Oriente, com mui raras exceções – decadência por assim dizer passiva que o Ocidente mesmo não sofreu, ele que estava inteiramente ocupado em sua desviação ativa e criativa –, mas nem por isso o Islã deixou de proteger o Oriente durante alguns séculos contra o vírus civilizacionista; ele retardou-lhe consideravelmente a expansão e amorteceu mesmo seus efeitos de uma maneira preventiva [7]. O Ocidente, por sua vez, pôde manter, no próprio marco de sua desviação e independentemente dela, qualidades humanas que, no Oriente, foram seriamente reduzidas, não em toda parte, mas em muitos setores, e a tal ponto que certos juízos ocidentais se beneficiam, ao menos, de circunstâncias atenuantes; os sentimentos de superioridade dos colonizadores não foram sempre inteiramente gratuitos[8] como gostam de pensar defensores do Oriente que são tão entusiastas como abstratos.

Sem dúvida, o abuso luciferino da inteligência que se volta contra a verdade e, finalmente, contra o homem, é pior que o simples enfraquecimento moral; mas a surpreendente facilidade com a qual o Oriente decadente adotou o modernismo ocidental quando lhe foi possível prova, não obstante, que há, entre os dois excessos como que uma complementaridade providencial, e que o enfraquecimento moral, a partir de certo grau, é muito menos inocente do ponto de vista espiritual, e portanto do ponto de vista da verdade, do que se poderia pensar à primeira vista; ou do que se gostaria de acreditar por amor à tradição [9]. De resto, aderir realmente à tradição é aderir a ela com discernimento, não por simples rotina; carecer de discernimento a ponto de desertar da tradição quando as condições políticas o permitem ou a isso convidam – ou sofrer esta deserção sem protestar [10] – não é realmente ter o espírito tradicional, e não manifesta uma mentalidade digna de ser citada como exemplo ou de ser admirada sem reservas.

De uma maneira geral, uma das descobertas mais decepcionantes de nosso século é o fato de que a média dos crentes sob todos os céus já não são inteiramente crentes; que eles já não têm verdadeiramente a sensibilidade conforme à sua religião e que se pode dizer-lhes qualquer coisa. A humanidade se encontra mergulhada na kali-yuga, a “idade de ferro”, e a maior parte dos homens não está à altura de sua religião – se é que eles ainda têm uma religião –, ao ponto de não poder representá-la conscientemente e solidamente; seria ingênuo, portanto, acreditar que eles encarnam um certo mundo tradicional, ou seja, que eles são o que este é. À questão de saber se o Oriente habitual é a tradição, deve-se responder sim e não; não se poderia, com conhecimento de causa, responder simplesmente sim, mas seria sem dúvida mais inadequado ainda responder simplesmente não, dada a complexidade do problema. Tudo isto não tem relação com a tipologia religiosa, de que falamos no começo deste capítulo, mas, como o mal procede tanto por excesso quanto por privação – e a falsificação do bem participa dos dois vícios [11] –, as características formais de uma religião influem necessariamente, ainda que muito indiretamente e por subversão, na gênese de determinada degenerescência particular; o que se constata na decadência oriental tanto quanto na desviação ocidental..

O que caracteriza fundamentalmente essa desviação, que o simples termo “materialismo” não poderia definir, é um triplo abuso da inteligência: filosófico, artístico e científico; é desse luciferismo – inaugurado pela Grécia “clássica”, depois neutralizado por um milênio de Cristianismo e, por fim, reeditado pelo Renascimento – que nasceu o mundo moderno, o qual, de resto, deixou de ser unicamente ocidental, o que não poderia ser uma falta exclusiva dos ocidentais.

Há, evidentemente, em toda parte uma diferença decisiva de qualidade entre os homens espirituais e os homens mundanos, ou entre os tradicionais e os antitradicionais, os ortodoxos e os heterodoxos; mas não a há, do ponto de vista do valor humano global, entre o Oriente e o Ocidente. Se a priori o Ocidente tem necessidade do Oriente tradicional, este tem necessidade a posteriori do Ocidente que esteve em sua escola.


Notas

[1] Mesmo que seja um “Absoluto relativo”, mas no momento não é esta a questão, pois toda a Ordem divina é absoluta em relação à relatividade humana; mas não em relação ao puro Intelecto, que supera toda relatividade – efetivamente ou potencialmente –, sem o que nós não teríamos nem mesmo a noção do Absoluto.

[2] Do ponto de vista da Lei, é conforme à virtude não somente o que serve ao interesse espiritual e eventualmente também material do indivíduo e de seu próximo imediato – o interesse espiritual sendo incondicional, e o material, condicional –, mas também o que serve ao equilíbrio da sociedade; enquanto que, do ponto de vista da simples natureza das coisas, é conforme à virtude o que, sem levar em conta as necessidades da coletividade, é justo em si e com isso serve a determinado interesse espiritual, com a condição de não prejudicar os interesses legítimos de ninguém.

[3] Enquanto que, nos dois casos, influências cristãs estão totalmente excluídas. Trata-se de arquétipos espirituais, não de fenômenos históricos.

[4] No original, biais, que significa, entre outras coisas, “obliquidade”, “inclinação”, “meio de resolver um problema”. Havíamos traduzido esta palavra por “desvio”, mas, por sugestão de um leitor, voltamos a este ponto e a substituímos por “viés”. (N. do T.)

[5] Não sob o da modalidade característica, e realmente única, que realiza o “Verbo feito carne”; ainda que o Alcorão reconheça que Cristo é “Espírito de Deus” e que ele nasceu de uma Virgem.

[6] Nisto, o Oriente finalmente se juntou ao Ocidente, por vezes com um zelo de “aprendiz de feiticeiro”. No que diz respeito à degeneração geral da humanidade, ela foi prevista por todas as tradições, e seria no mínimo paradoxal negá-la para o Oriente por uma preocupação de tradicionalismo.

[7] Um fenômeno que é preciso assinalar aqui a fim de prevenir as confusões mais desagradáveis é o falso tradicionalismo que faz do Islã o estandarte de um nacionalismo ultramoderno e subversivo, introduzindo no formalismo religioso ideias e tendências que são diametralmente opostas à doutrina islâmica e à mentalidade muçulmana. Iniciativas análogas se produziram também em outros mundos tradicionais.

[8] Os modernistas orientais o reconhecem em maior ou menor grau, mas responsabilizam por isso a tradição, e é, aliás, em virtude de seu modernismo que eles têm interesse em tal reconhecimento; eles chegam mesmo a criticar o colonialismo por ter mantido as instituições tradicionais.

[9] Pode-se acusar o Ocidente de difundir seus erros no mundo inteiro, mas é preciso que haja alguém que os aceite. A teologia não desculpou nunca Adão por ter sido Eva a começar.

[10] Em certos casos, deve-se levar em conta o fato de que são necessariamente os homens antitradicionais que dispõem dos meios técnicos e, acima de tudo, do armamento, de modo que os homens tradicionais estão sem defesa; mas, na maior parte dos casos, esta situação geral não impediria que os partidários da tradição manifestassem sua resistência. Foi-nos dito, mais de uma vez, no Oriente, que tudo o que acontece é “desejado por Deus”; ora, ter-se-ia podido, em situações análogas, fazer esse raciocínio desde a Idade Média e mesmo desde a Antiguidade, e ninguém pensou em fazê-lo antes desta segunda metade do século XX.

[11] A falsificação resulta do pecado de orgulho: falsificar um bem é tomá-lo para si, subordiná-lo a um fim que lhe é contrário, portanto viciá-lo por uma intenção inferior. O orgulho, como a hipocrisia, que o acompanha, só poderia produzir falsificação.