Premissas epistemológicas

Ensaio que integra o livro Nos Caminhos da Religião Perene, de Frithjof Schuon | Todos os direitos reservados para World Wisdom Inc.  Proibida a reprodução total ou parcial esta obra sem autorização dos detentores dos direitos. | Tradução do original francês. | Publicado no website FSchuon.net em dezembro de 2015. | Esta tradução portuguesa desta obra não foi publicada em papel.


 Índice

Página de rosto | Prefácio | Premissas epistemológicas | Dimensões, modos e graus da Ordem divina | Especulação confessional: intenções e impasses  | Obstáculos da linguagem da fé | Notas de tipologia religiosa | Enigma e mensagem de um esoterismo | Escatologia universal | Síntese e conclusão


Premissas epistemológicas

O termo philosophia perennis, que surgiu no Renascimento, e do qual a neoescolástica fez amplo uso, designa a ciência dos princípios ontológicos fundamentais e universais; ciência imutável como esses próprios princípios, e primordial pelo próprio fato de sua universalidade e de sua infalibilidade. Utilizaríamos de bom grado o termo sophia perennis, para indicar que não se trata de “filosofia” no sentido corrente e aproximativo do termo – o qual sugere simples construções mentais, surgidas da ignorância, da dúvida e de conjeturas, ou mesmo do gosto pela novidade e pela originalidade –, ou ainda poderíamos usar o termo religio perennis, referindo-nos então ao lado operativo dessa sabedoria, portanto ao seu aspecto místico ou iniciático.[1] E é para lembrar este aspecto, e para indicar que a sabedoria universal e primordial envolve o homem inteiro, que escolhemos para nosso livro o título de “Religião Perene”; para indicar, também, que a quintessência de toda religião está nessa religio metafísica, e que é preciso conhecer a esta se se quer explicar este mistério ao mesmo tempo humano e divino que é o fenômeno religioso. Ora, explicar este fenômeno “sobrenaturalmente natural” é certamente uma das tarefas mais urgentes de nossa época.

Quando se fala de doutrina, pensa-se, em primeiro lugar e com razão, num leque de conceitos concordantes; mas é preciso levar em conta também o aspecto epistemológico do sistema em questão, e é esta dimensão, a qual, também ela, faz parte da doutrina, que queremos examinar aqui como forma de introdução. É importante saber, antes de mais nada, que há verdades que são inerentes ao espírito humano, mas que, de fato, estão como que enterradas no “fundo do coração”, isto é, contidas a título de potencialidades ou virtualidades no Intelecto puro: trata-se das verdades principiais e arquetípicas, aquelas que prefiguram e determinam todas as outras. A elas têm acesso, intuitiva e infalivelmente, o “gnóstico”, o “pneumático”, o “teósofo” – no sentido próprio e original desses termos –, e a elas tinha acesso, por consequência, o “filósofo”, segundo o significado ainda literal e inocente do termo: um Pitágoras ou um Platão, e em parte mesmo um Aristóteles, a despeito de sua perspectiva exteriorizante e virtualmente cientificista.

E isto é de primeira importância: se não houvesse o Intelecto puro – a faculdade intuitiva e infalível do Espírito imanente –, também não haveria a razão, pois o milagre da raciocinação só se explica e só se justifica pelo da intelecção. Os animais não têm a razão porque são incapazes de conceber o Absoluto; em outras palavras, se o homem possui a razão, e com ela a linguagem, é unicamente porque ele tem acesso, em princípio, à visão suprarracional do Real e, por consequência, à certeza metafísica. A inteligência do animal é parcial, a do homem é total; e esta totalidade só se explica por uma realidade transcendente à qual a inteligência é proporcional.

Assim, o erro decisivo do materialismo e do agnosticismo é o de não ver que as coisas materiais e as experiências correntes de nossa vida estão imensamente abaixo da envergadura de nossa inteligência. Se os materialistas tivessem razão, essa inteligência seria um luxo inexplicável; sem o Absoluto, a capacidade de concebê-lo não teria causa. A verdade do Absoluto coincide com a própria substância de nosso espírito; as diversas religiões actualizam[2] objetivamente o que nossa subjetividade mais profunda contém. A revelação é no macrocosmo o que a intelecção é no microcosmo; o Transcendente é imanente ao mundo, sem o quê este não poderia existir, e o Imanente é transcendente em relação ao indivíduo, sem o quê Ele não o superaria.

O que acabamos de dizer sobre a envergadura da inteligência humana aplica-se também à vontade, no sentido de que o livre arbítrio prova a transcendência de sua meta essencial, para a qual o homem foi criado e pela qual o homem é homem; a vontade humana é proporcional a Deus, e é só em Deus e por ele que ela é totalmente livre. Poder-se-ia dizer algo análogo no que diz respeito à alma humana: nossa alma prova Deus porque ela é proporcional à Natureza divina, e ela o é pela compaixão, pelo amor desinteressado, pela objetividade, a capacidade de sair de nossa subjetividade e, por consequência, de nos superar; é isso que caracteriza precisamente a inteligência e a vontade do homem. E é nesses fundamentos da natureza humana – imagem da Natureza divina – que se enraíza a religio perennis, e com ela toda religião e toda sabedoria.

“Discernir” é “separar”: separar o Real do ilusório, o Absoluto do contingente, o Necessário do possível, Atmâ de Mâyâ. Ao discernimento se junta, complementar e operativamente, a “concentração”, que “une”: é a tomada de consciência plena – a partir da Mâyâ terrestre e humana – do Atmâ ao mesmo tempo absoluto, infinito e perfeito; sem igual, sem limite e sem falha. Segundo certos Padres da Igreja, “Deus tornou-se homem a fim de que o homem se torne Deus”; fórmula audaciosa e elíptica que parafrasearemos de maneira vedantina dizendo que o Real se tornou ilusório a fim de que o ilusório se torne real; Atmâ se fez Mâyâ a fim de que Mâyâ realize Atmâ. O Absoluto, em seu transbordamento, projeta a contingência e nela se olha, num jogo de reciprocidade do qual ele sairá vencedor, ele que é o único que é.

* * *

Há, no Universo, o conhecido e o cognoscente; em Atmâ, os dois polos estão unidos, um se encontra inseparavelmente no outro, enquanto em Mâyâ esta unidade se cinde em sujeito e objeto. Conforme o ponto de vista, ou conforme o aspecto, Atmâ é seja a “Consciência” absoluta – a “Testemunha” universal, o “Sujeito” puro –, seja o “Ser” absoluto, a “Substância”, o “Objeto” puro e transcendente; Ele é cognoscível como “Realidade”, mas Ele é também o “Cognoscente” imanente de todas as suas próprias possibilidades, em primeiro hipostáticas e depois existenciais e existenciadas.

E isto é, para o homem, de uma importância decisiva: o conhecimento do Total exige da parte do homem a totalidade do conhecer. Ele exige, além de nosso pensamento, todo o nosso ser, pois o pensamento é parte, não todo; e é isto que indica a meta de toda vida espiritual. Quem concebe o Absoluto – ou quem crê em Deus – não pode se deter de jure neste conhecimento, ou nesta crença, realizadas pelo pensamento somente; ao contrário, há que integrar tudo o que se é nesta adesão ao Real, como o exigem, precisamente, a absolutez e a infinitude deste. O homem deve “tornar-se o que ele é” porque ele deve “tornar-se o que é”. “A alma é tudo o que ela conhece”, disse Aristóteles.

Aliás, o homem não é somente um ser pensante, ele é também um ser que tem uma vontade, o que quer dizer que a totalidade da inteligência implica a liberdade da vontade. Esta liberdade não teria razão de ser sem um objetivo prefigurado no Absoluto; sem o conhecimento de Deus, e de nossos fins últimos, ela não seria nem possível nem útil.

O homem é feito de pensamento, de vontade e de amor: ele pode pensar o verdadeiro ou o falso, ele pode querer o bem ou o mal, e ele pode amar o belo ou o feio.[3] Ora, o pensamento do verdadeiro – ou o conhecimento do real – exige, por um lado, a vontade do bem e, por outro, o amor ao belo, portanto à virtude, pois esta não é senão a beleza da alma; assim, os gregos, que eram tanto pensadores quanto estetas, englobavam a virtude na filosofia. Sem a beleza da alma, todo querer é estéril, ele é mesquinho e se fecha à graça; e, de uma maneira análoga: sem o esforço da vontade, todo pensamento espiritual permanece no fim das contas superficial e ineficaz, e leva à pretensão. A virtude coincide com uma sensibilidade proporcional – ou conforme – à Verdade, e é por isso que a alma do sábio plana acima das coisas, e por isso mesmo acima de si mesma, se assim podemos dizer; de onde o desinteressamento, a nobreza e a generosidade das grandes almas. Evidentemente, a consciência dos princípios metafísicos não poderia quadrar com a pequenez moral, como a ambição e a hipocrisia: “Sede perfeitos como vosso Pai no Céu é perfeito.”

Há algo que o homem deve saber e pensar; e algo que ele deve querer e fazer; e algo que ele deve amar e ser. Ele deve saber que Deus é o Ser necessário, o qual, por consequência, se basta a si mesmo; que Ele é o que não pode não ser, enquanto o mundo é somente o possível, que pode ser ou não ser; todas as outras distinções e apreciações derivam desse distinguo fundamental. Além disso, o homem deve querer o que o aproxima de Deus diretamente ou indiretamente, ao mesmo tempo em que se abstém do que o afasta de Deus, sob os mesmos aspectos; o principal conteúdo desse querer sendo a prece, a resposta dada a Deus; o que engloba tanto a concentração mística como a meditação metafísica. Por fim, o homem deve amar “em Deus” o que manifesta a Beleza divina, e mais geralmente tudo o que é conforme à Natureza de Deus; ele deve amar o Bem, ou seja, a Norma, sob todas as suas formas possíveis; e, como a Norma supera necessariamente as limitações do ego, o homem deve tender a superar seus próprios limites. É preciso amar a Norma ou o Arquétipo mais que seus reflexos, portanto mais que o ego contingente; e é este conhecimento de si e este amor desinteressado que constituem a nobreza da alma.

* * *

Há uma questão que é sempre levantada, correta ou erroneamente: as realidades metafísicas são necessariamente explicáveis, ou, ao menos, não há situações misteriosas que só podem ser expressadas pelo paradoxo, ou mesmo pelo absurdo? Demasiado frequentemente se usou esse argumento para mascarar fissuras nas doutrinas teológicas das quais se objetivaram as imperfeições subjetivas: não podendo resolver determinados enigmas, decretou-se que o “espírito humano” não é capaz de o fazer, e incriminou-se antes de tudo a lógica, “aristotélica” ou não, como se esta fosse sinônimo de racionalismo, de dúvida e de ignorância.

No plano das coisas naturais, basta dispor das informações necessárias e então raciocinar corretamente; as mesmas condições valem no plano das coisas sobrenaturais, com a diferença de que o objeto do pensamento exige então a intervenção da intelecção, que é uma iluminação interior; pois, se as coisas naturais podem exigir uma certa intuição independente do raciocínio como tal, a fortiori as coisas sobrenaturais exigem tal intuição, desta feita de uma ordem superior, pois elas não são auto-evidentes. A razão, dissemos mais de uma vez, nada pode sem os dados sobre os quais ela se exerce, e na ausência dos quais ela raciocina no vazio: esses dados são fornecidos, em primeiro lugar pelo mundo, que em si é objetivo; em segundo lugar, e em combinação com o fator precedente, pela experiência, que, enquanto tal, é subjetiva; em terceiro lugar, pela Revelação, que, como o mundo, é objetiva, dado que ela nos vem desde fora; em quarto lugar, pela intelecção, que é subjetiva, visto que se produz em nós mesmos.

Uma coisa levando à outra, cremo-nos autorizados a inserir aqui a seguinte observação: como todo relativismo, o existencialismo se contradiz a si mesmo; grande adversário do racionalismo – ao menos é assim que ele se imagina –, ele quer pôr a experiência no lugar do raciocínio, sem se perguntar minimamente por que o raciocínio existe, nem como se pode cantar as glórias da experiência sem recorrer à razão. É precisamente a própria experiência que demonstra que a raciocinação é coisa eficaz, sem o que ninguém raciocinaria; e é a própria existência da razão que indica que esta faculdade deve ter um objeto. Os animais fazem certamente experiências, mas eles não raciocinam; enquanto, ao contrário, o homem pode dispensar evitar muitas experiências raciocinando. Querer substituir o raciocínio pela experiência no plano prático e de uma maneira relativa ainda pode ter um sentido; mas fazer o mesmo no plano intelectual e especulativo, como o querem os empiristas e os existencialistas, é propriamente demencial. Para o homem inferior, só é real o que é contingente, e é no nível das contingências que ele procura, por seu método, rebaixar os princípios, quando não os nega pura e simplesmente. Esta mentalidade de shûdra se infiltrou na teologia cristã e causou aí a destruição que se conhece.[4]

Mas voltemos, após este parêntese, ao problema da epistemologia espiritual. Sem dúvida, a lógica tem limites, mas ela é a primeira a apoiar esta constatação, sem o que ela não seria lógica, precisamente; contudo, os limites da lógica dependem da natureza das coisas, e não de um ucasse confessional. A ilimitação do espaço e do tempo parece absurda no sentido de que a lógica não a pode explicar de uma maneira concreta e exaustiva; é perfeitamente lógico, contudo, constatar que esta dupla ilimitação existe, e nenhuma lógica nos interdita saber com certeza que esse fenômeno resulta do Infinito principial; mistério que nosso pensamento não poderia explorar, e que se manifesta precisamente sob os aspectos do desdobramento espacial e da transformação temporal, ou ainda sob o da ilimitação do número. De uma maneira análoga, a unicidade empírica do ego – o fato de ser determinado ego e não determinado outro e de ser o único a ser “si mesmo” –, essa unicidade não poderia explicar-se concretamente pela lógica, e, no entanto, esta é perfeitamente capaz de esclarecê-la de uma maneira abstrata com a ajuda dos princípios do necessário e do possível e de escapar assim ao obstáculo da absurdidade.[5]

Incontestavelmente, as Escrituras Sagradas contêm contradições; os comentários tradicionais as explicam não negando à lógica o direito de constatá-las e de satisfazer nossas necessidades de explicação, mas pesquisando o liame subjacente que abole a aparente absurdidade, esta sendo na realidade uma elipse.

Se a sabedoria de Cristo é “loucura aos olhos do mundo”, é porque o “mundo” está no oposto do “reino de Deus que está dentro de vós” e por nenhuma outra razão; não é, certamente, porque ela reivindicaria um direito misterioso ao contrassenso, quod absit.[6] A sabedoria de Cristo é “loucura” porque ela não lisonjeia a perversão exteriorizante e, ao mesmo tempo, dispersante e endurecedora, que caracteriza o homem da concupiscência, do pecado, do erro: é essa perversão que, precisamente, constitui o “mundo”; essa perversão com sua insaciável curiosidade científica e filosófica, a qual perpetua o pecado de Eva e de Adão e o reedita sob formas indefinidamente diversas.[7]

No plano das controvérsias religiosas, a reivindicação – em mão única – de um direito sagrado ao ilogismo, e a atribuição de um vício luciferino à lógica elementar do contraditor, e isto em nome de determinada “pneumatologia” auto-intitulada translógica e de fato objetivamente incontrolável – essa reivindicação, dizemos, é evidentemente inadmissível, pois ela não é senão um monólogo obscurantista, ao mesmo tempo que uma faca de dois gumes, e isto por seu próprio subjetivismo; todo diálogo torna-se impossível, o que, de resto, dispensa o interlocutor de se converter, pois o homem não deve nada a uma mensagem que pretende se subtrair às leis do pensamento humano. Por outro lado, o fato da experiência subjetiva não oferece jamais um argumento doutrinal válido; se a experiência é justa, ela pode sempre se exprimir de uma maneira satisfatória ou ao menos suficiente.[8]

A Verdade metafísica é exprimível e inexprimível ao mesmo tempo: inexprimível, ela não é, contudo, incognoscível, pois o Intelecto desemboca na Ordem divina e por consequência engloba tudo o que é; e, exprimível, ela se cristaliza em formulações que são tudo o que elas devem ser, pois elas nos comunicam tudo o que é necessário ou útil a nosso espírito. As formas são as portas para as essências, no pensamento e na linguagem tanto quanto em todo outro simbolismo.


Notas

[1] Especifiquemos, nesta ocasião, que nada temos contra o termo “filosofia”, pois os Antigos o aplicavam a todo gênero de sabedoria autêntica; mas, de fato, o racionalismo sob todas as suas formas – incluindo o que poderíamos chamar de “infrarracionalismo” – deu a este termo um sentido restritivo, de modo que não se sabe nunca que alcance lhe dar; se Plotino é um filósofo, Descartes não o poderia ser – salvo do ponto de vista totalmente extrínseco do gênero literário –, e inversamente.

[2] No sentido original do termo, de passagem da potência ao ato, de “ativação”. (N. do T.)

[3] Uma nuance se impõe aqui, a despeito de sua evidência: ama-se o homem de bem mesmo que ele seja feio, mas é evidentemente por causa de sua beleza interior, e esta é imortal, enquanto a feiura exterior é passageira; mas, por outro lado, não se deve perder de vista que a beleza exterior, mesmo combinada com uma feiura interior, manifesta a beleza em si, e esta é de natureza celeste e não deve ser desprezada em nenhuma de suas manifestações. A difamação da beleza física feita por muitos ascetas pode ser útil sob o aspecto da fraqueza humana, mas ela nem por isso deixa de ser inadequada e ímpia sob um aspecto mais profundo.

[4] Certos teólogos modernistas querem muito admitir que existe um Deus – encontram-se para isso certos motivos –, mas procura-se justificar isso de uma maneira “provisória” e não “congelada”, ao mesmo tempo em que se recusa, está claro, as formulações definitivas dos escolásticos; ao passo que, neste plano, ou a verdade é definitiva ou ela não existe. Um modo de conhecimento que é incapaz de nos entregar a verdade agora, não no-la entregará nunca.

[5] A subjetividade em si participa do Ser necessário porque o Absoluto é pura Consciência; a relatividade – e por consequência a manifestação e a diversidade – da subjetividade é também necessária, e isto em razão da Irradiação divina, que é função do Infinito. Ou seja: a subjetividade particular é uma possibilidade; seu princípio é do domínio do Absoluto; e sua particularidade, do domínio do relativo ou da contingência. Mas seria absurdo perguntar por que sou eu que sou eu, e a lógica não sofre nem um pouco com isso.

[6] Mencionemos, a título de exemplo, a seguinte contradição: segundo a Bíblia, Deus eleva Enoque junto a si, e Elias ascende ao céu numa carruagem de fogo; mas, segundo o credo católico, Cristo “desceu aos infernos” a fim de levar ao céu todos os homens que tinham vivido antes dele, incluídos Enoque e Elias, que, também eles, estavam então “embaixo”, embora Deus os tivesse colocado “no alto”. Tudo isto para dizer que ninguém é salvo senão pelo Logos divino; mas esse Logos é na realidade intemporal, ele age, portanto, independentemente da História, o que não impede, evidentemente, que ele possa se manifestar sob forma humana, portanto na História. Notemos, neste sentido, que alguns Padres da Igreja, falando do “seio de Abraão”, acrescentaram prudentemente: “o que quer que se possa compreender por este termo.”

[7] É muito estranho que a Igreja só perceba essa perversão nos planos dogmático e moral; tal cegueira tem algo de providencial, no sentido de que “o escândalo há de vir.”

[8] Falamos aqui de doutrina, portanto de conceitualização, não de mistério. Desnecessário dizer, nem toda experiência mística se deixa traduzir em palavras, mas nenhum verdadeiro místico sonharia fazer de uma simples experiência um argumento especificamente doutrinal; sem o que as doutrinas seriam inúteis, como a linguagem, aliás.